sexta-feira, 28 de março de 2014

Trabalho de Penélope (a revisora-tecelã)

Hoje, dia do revisor, me lembrei de uma imagem que sempre me remeteu ao ofício dos revisores, os estilistas da palavra. Lembrando que estilo tem a ver com estética, um ramo da filosofia, a questão da beleza continua relevante para nós. O que é um texto estilisticamente bonito? Essa beleza é tangível, objetiva, ou está nos olhos de quem lê?

 Vamos começar a pensar sobre isso com quem entendia de beleza, a famosa Penélope de A Odisseia, de Homero.


Após a partida de Ulisses, todos os principais homens das ilhas tinham pressa em desposar Penélope, “bela como Artemisa ou a loura Afrodite"[1]. No entanto, ela se valeu da astúcia e do seu tear para ludibriar todos. Algum deus soprou-lhe a ideia de fazer um grande pano, com seus melhores fios, para servir de mortalha a Laertes. E ela disse aos homens: “Esperai, porém, até que eu acabe este pano, pois não queria desperdiçar o fio que preparei para ele”. Então, durante o dia, ela o tecia e, à noite, o desfazia! Há-há! E isso durante anos, até ser desmascarada, mas felizmente surpreendida pelo retorno do ser amado.

 
 Pois, então, o trabalho do revisor não seria tal qual o de Penélope, conforme se vê neste verdadeiro tapete? O texto inicial é tecido e vai sendo construído e desconstruído nas mãos do revisor, que nunca considera seu trabalho pronto...



Agora imagine os clientes e as editoras como os grandes homens de Same, Zacinto e Ítaca olhando furiosos para você... Não há como adiar o casamento! O objetivo das editoras é publicar, e não corrigir um texto infinitamente.

 Portanto, é preciso ter cuidado nesse trabalho com o texto original. A revisão não pode alterar muito esse traço do autor que se chama "estilo" e sua coordenação é regida exatamente por esse princípio. Estilo é uma questão pessoal, pois tem a ver com nossa capacidade de expressão. Mas a liberdade de ação do revisor precisa ser exercida de forma consciente.

O que o estilista da palavra precisa é mostrar essa beleza aos olhos de quem vê, o leitor, e tornar a mensagem original o mais clara possível, às vezes modificando sua forma, e colaborando com ambos: o autor e o leitor.

A estilística é apenas um dos aspectos da revisão para o qual nem sempre há regras de bolo, e sim exemplos em bons textos de livros, revistas e jornais. Há ainda dicas e manuais de referência importantes para que possamos fundamentar nossas escolhas, como o Manual do Estadão.

 Emendas não defensáveis pela gramática são inaceitáveis. Causar erros, pelamordezeus! E pior ainda seria "parar de questionar o inquestionável". O revisor precisa sempre questionar TU-DO. Há muitas decisões a serem tomadas e muitas vozes a serem ouvidas nesse processo, mas o revisor tem a sua própria e pode intervir naquilo que couber ao seu limite de ação.

 Voltando à metáfora da tecelagem, encerro com o Dicionário de Símbolos:[2]

 “Tecido, fio, tear (...) são todos eles símbolos de destino, como em "a lua tece o destino”. (...) Inúmeras deusas trazem na mão fusos e rocas e controlam (...) o decurso dos dias. (...) Dominam assim o tempo (...) e envolvem por vezes o aspecto duro e impiedoso da necessidade, essa lei que rege a contínua e universal mudança dos seres e donde procede a infinita variedade das formas.”

Que nós, revisores, continuemos tecendo nossos destinos-textos, com nossas rocas-canetas-comentários em PDF, enfrentando o aspecto duro e impiedoso da gramática, donde procede a infinita variedade de formas e exceções.

Parabéns a todos!

 



[1] Homero, A Odisséia. Tradução de Fernando Gomes. Rio de Janeiro: Ediouro, 1998
[2] Chevalier, Jean. Dicionário de símbolos (mitos, sonhos, costumes, gstos, formas, figuras, cores, números). Tradução de Vera da Costa [ET AL]. 13 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1999.