quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

Um brinde aos filhos do Carnaval – e às filosofias de bar!


Finalmente, estão chegando os festejos carnavalescos deste ano, para a alegria de uns e a tristeza de outros! Nascida no mês do Carnaval, por sorte, sempre gostei da batida do samba, mas não da festa em si. E isso mudou só de uns anos pra cá... Por isso sempre me pergunto como e por que essa metamorfose ocorreu.

Que paixão é esta que o Carnaval desperta em alguns e não em outros? Ou que surge de repente, sem aviso? Será que ela fica latente, pois, no fundo, somos todos filhos do Carnaval (considerando sua origem remota*)? Isso porque os festejos populares sempre foram considerados uma espécie de “renascimento”. No Carnaval, ganhamos uma "segunda vida" que nos libera das regras e autoridades do cotidiano. Sabemos que somos incompletos e provisórios e, por isso, celebramos a renovação com o riso!

Isso me lembra lá longe das aulas de Teoria da Literatura e de Cultura Brasileira na faculdade, nas quais falamos sobre o teórico russo da cultura europeia Mikhail Bakhtin e o antropólogo brasileiro Roberto da Matta. Daí, tentei imaginar como seria uma conversa entre eles numa mesa de bar, na véspera do Carnaval do Rio de Janeiro, só pra ver a que conclusões poderiam chegar sobre o "ser ou não ser" filhos do carnaval?  E começa assim:
 
 

 – Camarada Roberto, dizer que o brasileiro é filho do carnaval me parece muito adequado para atrair estrangeiros curiosos, como eu. Mas sabemos que o Carnaval não é invenção do brasileiro! Há dez mil anos, os povos já realizavam seus cultos com cânticos e danças. Na Idade Média, havia procissões, ritos e cortejos intermináveis. E também a "festa dos tolos", a "festa do asno" e as "festas do templo", com seu rico cortejo de gigantes, anões, monstros e animais.
 
 – Sim, caríssimo Bakhtin! Isso sem falar dos bobos e bufões, que parodiavam as festas civis, as eleições de reis e rainhas e a escolha dos cavaleiros. Se não me engano, você falou sobre isso em A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento.
 
 – Exato, vejo que leu ao menos a primeira página da minha obra! Já fico grato, pois isso é raro, até mesmo na academia. Precisamos continuar mostrando aos “inteligentes contemporâneos” que todos esses ritos e festejos populares para o riso são uma fonte de sabedoria genuína! A grande diferença deles em relação aos ritos oficiais é mostrarem uma visão de mundo diferente, fora da que foi construída pela Igreja e pelo Estado. Nada de piedade, de dogmatismo, de misticismo: tudo é motivo de paródia na vida cotidiana. Aliás, manda descer uma gelada porque vejo que nossa conversa vai ser longa...
 
 – É claro, meu amigo. Vamos brindar a este encontro! Voltando ao seu ponto, o mais interessante é que essa dualidade de mundo que o homem medieval construiu pelo riso sempre esteve presente nas sociedades humanas. A diferença é que não havia valoração diferente entre os aspectos sérios e cômicos da vida. Nos velórios na época da Roma primitiva, chorava-se e debochava-se do defunto ao mesmo tempo. Difícil imaginar isso hoje!
 
– Roberto, é verdade que tudo ficou mais engessado sem o valor do riso. Os eventos oficiais não fazem nada além de consagrar o que está pré-fabricado, as hierarquias, os tabus, que de tão enraizados parecem até verdadeiros! Já os eventos festivos são a verdadeira festa humana, a do avesso, das renovações!
 
– Aí chegamos ao ponto principal, Bakhtin: parece que aqui no Brasil essa ponte com a visão cômica e carnavalesca de mundo não se quebrou. E o Estado não tem saída a não ser oficializar a alegria: são centenas de blocos de ruas, dezenas de escolas de samba! Mesmo que eu não gostasse de Carnaval, não teria como fugir dele.

 – Fato! Aqui o carnaval está vivo como se fosse ontem! Veja quantos pobres fantasiados de nobres, quantas donas de casa vestidas de rainha! É a própria vida que representa e interpreta outra vida, sem cenários e atores. É a segunda vida do povo, que não se exclui na brincadeira: o povo ri de si mesmo, por dentro! 
 
– Aliás, falando do carnaval no Rio, você prefere os blocos de rua ou as escolas de samba?
 
– Roberto, acho que carnaval não tem nada a ver com teatro e espetáculo. Os espectadores não assistem ao carnaval, eles vivem o carnaval desde que surgiu! A festa existe para o povo, sem exceção. E isso se vive tanto nas escolas quanto nos blocos, no morro e no asfalto. Porém me parece que o espetáculo das escolas na Sapucaí não é mais uma festa para todos, e sim para poucos.
 
– É o bendito dilema do esqueleto social brasileiro que fazemos de tudo para esconder: aos medalhões e VIPs, privilégios, ao povo, a lei. Tenho meus questionamentos sobre essa imagem “cordial” e “solidária” que o Brasil quer gritar para o mundo no carnaval... O Brasil esconde muito de sua imagem para si próprio ou acha que tem coisas que não precisa mostrar.

 – Estou sabendo, camarada. Li sua obra Carnavais, Malandros e Heróis e fiquei muito impressionado com sua análise sobre a cultura brasileira! Este é um dos motivos por eu estar aqui hoje: conhecer você e o Brasil pessoalmente. E também um pouco da cultura cervejeira do país. Garçom, pode trazer uma Original mesmo!

 – E está sendo um grande prazer ter essa prosa com você, Bahktin. Quem iria imaginar?

 – Verdade, camarada. Nem eu! Mas sempre sonhei em conhecer o calor do Brasil!

 – As praias? Sim, aqui somos filhos das associações espontâneas como as praias, o carnaval, o futebol... O carnaval estimula essa sensação de que todos somos iguais e que o que vale é o contato familiar e intenso entre as pessoas. e não seu posto social, mas na prática é diferente: "cada um deve saber o seu lugar”, ou “cada macaco no seu galho”, como diz o povo. As engrenagens dessa hierarquia social marcada pela intimidade e os parentescos garante a uns bem nascidos e muito bem relacionados tratamento VIP, impunidade, enquanto o “povo” fica na mão da lei e do racismo à brasileira, e ainda assim é sempre visto como “cordial” e “generoso”... Como toda sociedade colonial, temos grandes conflitos e crises, mas somos avessos a eles. E conflito sempre é tratado como revolta e sufocado com coerção policial ou social violenta. Não há muito espaço para a rebeldia cultural e inovações, meu amigo. Nisso ficamos devendo à Rússia!
  
– Mas, então, o que seria do Brasil sem o carnaval, meu camarada? Quando esse drama da hierarquia iria se resolver senão no reinado de Momo? Como os indivíduos do poder iriam se sujeitar a ser anônimos, e a massa anônima e impotente poderia inverter a situação, com indivíduos deixando de ser marginais e tornando-se finalmente pessoas no drama social: nobres, passistas, cantores, batuqueiros!
 
– Acho que pensamos parecido, Bakhtin: o carnaval é o riso popular que ecoa através dos tempos, aquele riso que não acaba, que não só diverte, mas que escarnece da tentativa de superioridade, da permanência e do poder. Essa é essência da rebeldia, seja ela russa ou brasileira! Como dizem por aí, “ri melhor quem ri, apesar de tudo”. Então, façamos um brinde ao Carnaval!

 
A discussão deu pano pra manga. Em seguida, passaram a falar de outros assuntos, como a corrupção no governo, a crise na Ucrânia e, é claro, o futebol! Beberam um tanto mais e seguiram ébrios rumo a um bloco que passava pela rua. Assim festejaram, pela primeira vez, o carnaval – sem pensar em nada. Apenas pularam abraçados pela força da amizade recém-travada e contagiados pela vibração da massa. Um fantasiado de palhaço e outro de burro. Passaram despercebidos.

 


Nota:

* Na verdade, a origem do carnaval é desconhecida. Há os que atribuem a origem dessa festa aos cultos agrários realizados pelos povos primitivos há dez mil anos antes de Cristo, quando esses povos com cânticos e danças celebravam as boas colheitas. Outros atribuem às festas em homenagem à deusa Ísis e ao Boi Ápis, no Egito antigo.

Na Grécia, o Carnaval foi oficializado, no século VII a.C., nas festas de culto a Dionísio, deus do vinho e dos prazeres da carne, em agradecimento aos deuses pela fertilidade do solo e pela produção.  Essas festas incluíam orgias sexuais e bebidas.

Na Roma antiga, as festas eram em honra ao deus, Saturno (as saturnálias), deus da agricultura e ao deus Baco (bacanais ou dionisíacas), chamado de Dionísio pelos gregos. 

No século IV, com o advento do cristianismo, a Igreja tentou combater várias tradições pagãs, mas com o tempo foi forçada a consentir com essas práticas e, em 590, o Papa Gregório I, oficializou o carnaval no calendário eclesiástico. Em 1545, durante o Concílio de Trento, o carnaval passou a ser reconhecido como uma festa popular.

Embora não haja certeza quanto à origem da palavra “carnaval”, sabe-se que surgiu entre os séculos XI e XII, e deriva do latim carnelevamen (tirar a carne), depois modificada para carne vale (adeus carne). Está ligada à tradição cristã, de não comer carne no período que precede a Quaresma (Paixão de Cristo). Nesse período todos os cristãos deveriam abster-se de carne por quarenta dias, da quarta-feira de cinza até as vésperas da Páscoa, jejuar e fazer penitências. Portanto, o carnaval significava a possibilidade de fugir desses rigores, festejando em liberdade.

 
http://www.historiamais.com/historia_carnaval.htm