segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Se o (seu) mundo fosse acabar, me diz o que você fa(la)ria?


Imagine se, de repente, ninguém mais te entendesse? Seus filhos não quisessem mais ouvir suas histórias nem responder às suas perguntas. Seus segredos de amor ao pé do ouvido não tivessem mais efeito. Ninguém risse mais das suas piadas. Sua música não fosse mais tocada. Você estaria em um imenso vazio até que o mundo quisesse restabelecer a comunicação, certo? Ou, quem sabe, já não estivesse morto sem saber, como no filme O Sexto Sentido?

Talvez seja essa a sensação que as pessoas têm quando suas línguas maternas deixam de ser faladas: um profundo vazio existencial. Podemos pensar, então, que quando uma língua se silencia, um mundo acaba, pois é a língua que serve de suporte à nossa identidade e cultura, nossa riqueza interior e nosso conhecimento de mundo. E, infelizmente, esse será o caso de centenas de pessoas no mundo todo nos próximos 90 anos. 




Na palestra da linguista Kristine Stenzel, no Museu do Índio, como parte do curso Dimensões das Culturas Indígenas, a mensagem foi clara: o patrimônio linguístico mundial está ameaçado e muitas frentes de preservação precisam acontecer logo. Estima-se que haverá a perda de 50% a 90% das 6.000 línguas vernáculas restantes no mundo só neste século. Isso porque os processos de mudança e perda linguística, que são naturais e graduais, avançaram em um ritmo galopante nos últimos 500 anos, com o extermínio das populações étnicas, as migrações, as guerras, a supervalorização das línguas oficiais, a desvalorização de culturas minoritárias e a introjeção da "fobia de si" pelos próprios falantes, que abandonaram suas línguas.



Acredita-se que eram faladas 1.200 línguas no Brasil antes do descobrimento. Hoje, restam cerca de 160, e os indígenas representam 3% da nossa população (300 a 400 mil pessoas). Desse total, apenas 15% dos grupos têm mais de 1.000 falantes. Mas, seja qual for o número de falantes, o fato é que todas as línguas indígenas brasileiras estão ameaçadas de extinção, porque qualquer pequena mudança pode abalar a estrutura desses grupos, alterando, assim, sua situação linguística.



Por outro lado, estão surgindo cada vez mais programas de estudo e documentação de LIBs (Línguas Indígenas Brasileiras). Para quem não sabe, somente no Rio de Janeiro, temos o PRODOCLIN (Projeto de Documentação de Línguas Indígenas), no Museu do Índio, e a Pós-Graduação em LIBs, no Museu Histórico Nacional/UFRJ, por exemplo.


A própria Kristine, da UFRJ, coordena um incrível projeto de documentação das línguas Kotiria e Waikhana no município de São Gabriel da Cachoeira, onde há quatro línguas co-oficiais: o português e três línguas indígenas. Esse movimento em prol da revitalização linguística está ganhando forças no mundo inteiro, e, principalmente, dentro das sociedades indígenas, que buscam apoio para resgatar seus idiomas e práticas culturais, além de capacitação para atuar como professores e documentadores. 


Acho que o segredo dessa força de sobrevivência dos indígenas pode estar na famosa pergunta do Paulinho Moska: se o (seu) mundo fosse acabar, me diz o que você faria? Somente nos colocando no lugar dos povos em declínio, nós, que falamos línguas “seguras”, poderíamos imaginar como é estar do outro lado. Mas , na última Flip, o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro mencionou a possibilidade de a civilização atual, com seu sistema econômico depredador, entrar em um colapso geral em poucos anos. 

Ele proferiu a frase de efeito ao lado que, apesar de contrariar as estatísticas, fala de um modo de vida que realmente funciona: “O mundo deles acabou há cinco séculos e eles estão aí, sobrevivendo, criando, inventando novas formas de expressão. Eles poderão nos ensinar como é possível ser feliz sem cartão de crédito, TV de plasma, computador. Sem essa civilização cuja existência depende da destruição de tudo a sua volta.”

Se o mundo fosse acabar, eu estaria do lado de quem já perdeu o seu mundo e o recuperou, ao menos dentro de si, ou que continua lutando para mantê-lo e revitalizá-lo junto à sua comunidade. Essa sabedoria indígena indica que é possível ir mais longe quando há autodeterminação e que o valor imaterial da cultura, expressa e enraizada nas palavras, é o único valor que não se perde, pois dá sentido à vida. E você, se o  (seu) mundo fosse acabar, o que você fa(la)ria?