A capa do novo disco dos Titãs,
Nheengatu, foi inspirada no mito da torre da Babel e, segundo a banda, simboliza
“um paradoxo pela associação da imagem de uma torre destruída pela falta de
entendimento com uma língua criada para favorecer o entendimento (o Nheengatu),
retratando contradição do Brasil atual”.
De cara, várias palavras me chamaram atenção: paradoxo, Nheengatu e contradição do Brasil atual. Isso porque elas estão perfeitamente intricadas. Veja só:
De cara, várias palavras me chamaram atenção: paradoxo, Nheengatu e contradição do Brasil atual. Isso porque elas estão perfeitamente intricadas. Veja só:
PARADOXO
Os fatos: ainda restam no sul da antiga Mesopotâmia
ruínas de torres que se ajustam à torre de Babel descrita pela
Bíblia (que, aliás, não teria a ver com a torre da pintura de óleo de Pieter
Brueghel, localizada nas terras baixas e férteis de Flandres). Arqueólogos relacionam o relato bíblico da Torre de
Babel com a queda do famoso zigurate de Etemenanki, na Babilônia. Babel,
capital do Império babilônico, era uma cidade-estado extremamente rica e
poderosa que recebia um grande número de
imigrantes de diversas nacionalidades, falantes de diferentes idiomas.
A etimologia: conforme
Adail Sobral em Dizer o 'mesmo' a outros:
ensaios sobre tradução, o próprio termo babel
é paradoxal: vem de um termo hebraico que significa "portão de Deus",
mas se aproxima da palavra hebraica balal,
que significa "confundir". Essas duas palavras refletem pontos de
vista de certo modo contrários entre si, usadas pelos judeus antigos para
se referir à Babilônia. E esses termos também designavam “país estrangeiro”, sugerindo que
a “globalização” já era realidade na época, com início datado na época das
grandes navegações.
A moral da história: a própria palavra Babel já denota o choque de sentidos com o qual o tradutor se depara, pois as palavras sempre refletem um ponto de vista cultural sobre algo, uma construção, e não um significado fixo. Esse ato
babélico de interpretar, evitar a “confusão” e “abrir os portões celestes"
da comunicação está sujeito à incompreensão, como qualquer ato humano, e é permeado de ambiguidades. Do mito, depreende-se que o mundo nasceu "babélico", fruto da diferença, e não da uniformidade. O processo de globalização é intrínseco ao fato de o mundo ser composto por povos diferentes que entram em contato. Daí, o que torna a comunicação possível é o reconhecimento dessas diferenças, e também do que torna diferentes universos culturais compatíveis entre si.
No território
brasileiro, antes dos anos 1500, habitavam nações indígenas que falavam
centenas de línguas e dialetos, hoje classificados em 102 grupos de três ramos
principais: tupi, macro-gê e aruaque. Estima-se que, no período pré-cabralino,
falavam-se quase 1.300 línguas diferentes.
Entre os séculos XV e XVI, sucessivas migrações de nativos do litoral sul para o norte do país, principalmente após a chegada dos colonizadores, contribuíram para o surgimento de uma língua franca de base tupi, o Nheengatu, falado em todo o território nacional até o século XIX. O Nheengatu acabou se firmando como língua de comunicação interétnica, usada em diversos ambientes, como escolas, igrejas, nas aldeias e nas relações de trabalho, principalmente na Amazônia, até mesmo após a Independência!
No litoral brasileiro, uma das primeiras
providências tomadas para garantir a comunicação entre índios e portugueses foi
a formação dos línguas (ou intérpretes) em centros de especialização de
tradutores do discurso religioso em Língua Brasílica (ou Nheengatu). Isso
porque os índios não falavam português entre si e nem com o colonizador. E as línguas indígenas não foram escolhidas para comunicação em razão do preconceito dos missionários, que as consideravam "línguas brutas e de brutos, sem livro, sem mestre e sem guia".
Com a progressiva dizimação dos povos indígenas, a extinção de várias línguas nativas e a consequente expansão do Nheengatu, posteriormente proibido e suplantado pela língua portuguesa por decreto, em meados do século XIX, a função do intérprete tornou-se, em grande parte, dispensável para os povos indígenas brasileiros.
Restam hoje, no Brasil, apenas cerca de 180 línguas nativas, faladas por uma população de 350.000 pessoas. Tais línguas e seus falantes correm verdadeiro risco de extinção, sendo algumas delas registradas pelo Projeto de Documentação de Línguas Indígenas (PRODOCLIN), desenvolvido no Museu do Índio.
Com a progressiva dizimação dos povos indígenas, a extinção de várias línguas nativas e a consequente expansão do Nheengatu, posteriormente proibido e suplantado pela língua portuguesa por decreto, em meados do século XIX, a função do intérprete tornou-se, em grande parte, dispensável para os povos indígenas brasileiros.
Restam hoje, no Brasil, apenas cerca de 180 línguas nativas, faladas por uma população de 350.000 pessoas. Tais línguas e seus falantes correm verdadeiro risco de extinção, sendo algumas delas registradas pelo Projeto de Documentação de Línguas Indígenas (PRODOCLIN), desenvolvido no Museu do Índio.
Uma análise mais
aprofundada do destino das línguas que futuramente se tornaram
minoritárias no Brasil após o período colonial aponta contradições básicas
do país atualmente: Quem são os brasileiros? Quem tem direito a voz? Só quem fala a mesma
língua? Só a camada dominante? O que de fato gera desentendimentos: a diversidade de idiomas e culturas ou os preconceitos? Será que a tradução realmente pode facilitar a comunicação?
Num mundo babélico por excelência e cosmopolita como o de hoje, traduzir se tornou ainda mais difícil, pois, se por um lado, há maior comunicação e contato, há também uma busca maior por segurança, e os grupos se retraem em seus mundos locais cada vez mais. Há povos que evitam dialogar com o outro por se iludirem com uma pretensa superioridade inata. Outros preferem se resguardar para preservar sua autonomia. E, no meio disso, há um mundo praticamente sem fronteiras, em que as pessoas se esbarram e precisam se comunicar, mesmo aos trancos e barrancos.
Será que a relação com o outro, com o diferente, sempre foi uma ameaça? Ou um mal necessário? Bakhtin afirma que o outro é vital para nos mostrar o que não podemos perceber sobre nosso próprio ser, mas que o encontro com o outro só é positivo se o sujeito voltar a si mesmo depois, apesar de ser constituído exatamente por essa relação.
Num mundo babélico por excelência e cosmopolita como o de hoje, traduzir se tornou ainda mais difícil, pois, se por um lado, há maior comunicação e contato, há também uma busca maior por segurança, e os grupos se retraem em seus mundos locais cada vez mais. Há povos que evitam dialogar com o outro por se iludirem com uma pretensa superioridade inata. Outros preferem se resguardar para preservar sua autonomia. E, no meio disso, há um mundo praticamente sem fronteiras, em que as pessoas se esbarram e precisam se comunicar, mesmo aos trancos e barrancos.
Será que a relação com o outro, com o diferente, sempre foi uma ameaça? Ou um mal necessário? Bakhtin afirma que o outro é vital para nos mostrar o que não podemos perceber sobre nosso próprio ser, mas que o encontro com o outro só é positivo se o sujeito voltar a si mesmo depois, apesar de ser constituído exatamente por essa relação.
Basta que para isso se valorize a
beleza dos paradoxos sociais, culturais e tradutórios de uma cultura tão rica
como a nossa, pois eles revelam as contradições do Brasil sob a ótica da necessidade
e do respeito à diversidade.
A tradução e a interpretação ainda são poderosas ferramentas de manutenção da pluralidade linguística e cultural dos povos brasileiros em meio ao mundo globalizado, pois, afinal, não somos macacos!
Já os detalhes sobre o papel da tradução/interpretação ficam para o próximo post. ;-)
A tradução e a interpretação ainda são poderosas ferramentas de manutenção da pluralidade linguística e cultural dos povos brasileiros em meio ao mundo globalizado, pois, afinal, não somos macacos!
Já os detalhes sobre o papel da tradução/interpretação ficam para o próximo post. ;-)