quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

O ano das (bem mal) ditas palavras no Facebook


Estamos no Natal, momento de reflexões, e só agora pude parar para escrever sobre o turbilhão de palavras bem ou malditas que permearam minha vida e, talvez, a sua, no Facebook e fora dele. Digo de cara que não foi uma reflexão fácil (logo, este texto não será dos mais otimistas). Mas me pareceu urgente fazê-la desse jeito, a seco. Mesmo se tratando de um tema geral, este texto tem pretensões filosóficas e parte de uma teoria da linguagem, então, pode valer a leitura!

Não sei se só eu tive essa impressão, mas, neste ano, falou-se muita bobagem. Sim, fato! Nunca vi tantas brigas no Facebook por conta de partidos políticos, cisões em grupos profissionais, comentários ofensivos em posts pessoais e por aí vai... O mundo nunca foi tão aberto à comunicação, e todos falam o que pensam e têm muitas opiniões – e claro que me incluo nisso! Mas quase tudo o que é dito parece irrelevante, pois não estamos nos comunicando. O fato de haver Internet, computadores e pessoas não gerou uma sociedade em redes, pois “cada pessoa ou grupo se move em culturas de significado e valores distintos e conflitantes”, como diz o filósofo  Luiz Felipe Pondé no livro “A Era do Ressentimento”.

Para o filósofo, vivemos a era do ressentimento, no sentido trazido por Nietzsche. Ser ressentido é algo naturalmente humano: negar a falta (de sentido, certeza, alegria, beleza), por inveja dos deuses imortais. Queremos ser plenos, viver em harmonia, ter direitos, principalmente à felicidade, e nunca fracassar. Daí, a facilidade com que fazemos julgamentos positivos sobre nós mesmos, sobre nossas “causas” e opiniões, encobrindo nossa vaidade e nossas fraquezas. Para ele, "daqui a mil anos, não vão lembrar na nossa época como a época do iPad. Vão lembrar da nossa época como a era do ressentimento. Somos uma civilização de mimados que não é capaz de escutar nenhuma crítica sem achar que é uma questão de ofensa pessoal".

O fato pungente é que o universo é indiferente aos nossos desejos, não temos direitos garantidos a nada e sempre há alguém melhor ou mais belo do que nós. E que também estamos cada vez mais sós nesse narcisismo delirante, cercados de fotos e celulares nos acompanham sem cessar nessa solidão coletiva. O consumo e as festas até diminuem um pouco a sensação, pois a parceria do uso é muito mais garantida que a parceria dos vínculos humanos, com suas ambivalências e confusões. Mas, afinal, será que ainda resta algo que nos une em plena sociedade do "eu"?

Há sempre as PALAVRAS. Para Grice, o princípio geral que rege a comunicação é a COOPERAÇÃO. Não se deve entender cooperação como uma visão idealizada da troca verbal como um evento harmonioso. Cooperação no sentido de que cada enunciado tem um objeto ou uma finalidade implícitos, ou seja, o falante leva em conta o desenrolar da conversa com base na cooperação da interpretação do que diz. Apesar de a linguagem humana ser o reino da discórdia e do engano, características tão humanas e contemporâneas, sem a cooperação para a interpretação dos enunciados nem mesmo o conflito pode ocorrer.

Para isso, voltemos ao narcisismo e à teoria da Face (interessante coincidência com o nome Facebook), de E. Goffman, que gerou trabalhos interessantes sobre polidez linguística nos estudos da Pragmática. A polidez está associada à autoimagem pública de qualquer indivíduo e é um recurso de dissimulação do afeto negativo. Partindo desse princípio, "há sempre um esforço pela preservação da face, que se torna, então, condição da interação" (Martelotta. M.,Manual de Linguística, p. 97).

Conforme Goffman, temos uma face social defensiva, que se preserva ao falar, e uma face protetora, que salva a face do outro por meio do respeito e da polidez. Brown e Levinson, que deram continuidade aos estudos de Goffman, falam da face negativa (desejo de preservação pessoal, privacidade, não imposição) e da face positiva (desejo de ser apreciado e aprovado). Os elementos que mantêm a face social são o orgulho, a honra e a dignidade. Já gafes, insultos e ofensas são ameaças à face.

Por exemplo, por que fazemos um pedido a alguém usando “por favor”? Porque estamos invadindo a privacidade da pessoa e ameaçando sua face. Isso não valeria também para qualquer interação social pública? Vale a pena fazer uma reclamação ofensiva com alguém pelo Facebook? O que é colocado em risco? Isso não acabará depondo contra você, em último caso? Vale a pena impor sua opinião em vez de tentar ser amigável ou dar opções para que o outro se sinta livre para refletir ou manter as próprias opiniões, mesmo não concordando com você? Adianta se expor ou a alguém em uma rede pública e depois se arrepender da privacidade perdida? Qual o custo de tudo isso? 
 
Leech compreende a polidez em termos de máximas de adequação social, quais sejam:

1-      Máxima do tato: minimize o custo para o outro, critique de forma indireta (a mesa está um pouco suja... em vez de limpe esta mesa!)

2-      Máxima da generosidade: maximize o custo para si próprio (posso sim fazer esse favor pra você)

3-      Máxima da aprovação: maximize a honra do outro (se o Brasil não for campeão, azar da Copa)

4-      Máxima da modéstia: minimize seu orgulho

5-      Máxima da concordância: minimize a desavença entre as pessoas

6-      Máxima da simpatia: aproxime-se de quem te ouve, ouça-o

Bom, nada disso é fácil de pensar no calor do momento. Poucos de nós sequer se preocupam com as próprias faces, que dirá com as do outro. Mas a polidez é exatamente esse esforço de amadurecimento, de deixar de ser um ressentido que sabe tudo de si e do mundo para ser alguém disposto a dialogar. E, em casos de ameaça, usar recursos para minimizar as consequências negativas da exposição. Claro que tudo depende do contexto, das situações reais que enfrentamos, das diferenças culturais, de aspectos emocionais. Outro fator muito importante é o grau de intimidade que se tem com o interlocutor: não somos necessariamente "íntimos" porque somos amigos de alguém no Facebook e determinados comentários podem não deixar o outro tão à vontade. Mas se, por outro lado, não tentarmos usar as melhores palavras, a comunicação não ocorre e nada mais nos une – apenas a covardia e a falsa sensação de termos uma importância maior do que temos no universo.

E, retomando o espírito do Natal, há virtudes que nos unem e que são invisíveis para os que não as usam. A mais interessante delas seria a esperança que os outros nos emprestam, nos ajudando a dar sentido a nossas vidas. Em encontros não motivados por afinidade cultural, objetivo profissional, crenças em comum, não há também competição ou identificação, apenas pessoas com o simples desejo de serem felizes, falarem de seus sonhos e aflições mais profundos. Estar aberto ao mundo e ao diálogo no Facebook e fora dele nos torna pessoas minimamente maduras e, quiçá, felizes. Benditas sejam as palavras!
 
 

terça-feira, 30 de setembro de 2014

Um conto leve para alegrar o seu dia, tradutor/intérprete!

"Aproveitando a deixa sobre o dia do Tradutor, que se comemora hoje, desejo que São Jerônimo ilumine você para encontrar, também, na vida, os significados precisos para combinar, na vastidão das combinações, as opções mais perfeitas do bem viver."

Abro este breve post em comemoração ao Dia dos Tradutores e Intérpretes "roubando" o primeiro parabéns que recebi hoje, do meu padrinho, e estendo-o a todos os colegas que encontram na profissão um caminho que combina com seu bem viver, seus desejos e suas aspirações.

Mas não roubei como em uma das histórias de "Tradutor Cleptomaníaco", de Dezsö Kosztolányi, autor húngaro, que fala de forma bem-humorada sobre o tradutor que não cumpre o primeiro mandamento da (boa) tradução: não omitirás (ou roubarás). Os outros seriam: não adicionarás e não mudarás. Apesar de sempre haver controvérsias quanto ao que seja uma "boa tradução", acho que esses princípios básicos nos ajudam ser vistos como profissionais éticos, nos quais se pode confiar.

Mas fica aí um conto leve para alegrar o seu dia, tradutor/intérprete. Parabéns! ;-)


O TRADUTOR CLEPTOMANÍACO e outras histórias de Kornél Esti
Dezsö Kosztolányi
Tradução do original húngaro Ladislao Szabo


Falávamos de escritores e poetas, de velhos amigos, com que começamos a jornada, mas que depois se distanciaram e desapareceram. De quando em quando lançávamos um nome ao ar. Quem se lembra dele? Balançávamos a cabeça e um pálido sorriso se esboçava em nossos lábios. No espelho de nossos olhos surgia um rosto esquecido, uma carreira e uma vida perdidas. Quem sabe algo sobre ele? Viverá ainda? O silêncio respondia à pergunta. Neste silêncio, a coroa de flores de sua glória farfalhava, como farfalhavam as folhas no cemitério. Calávamo-nos.


Ficamos assim durante minutos, até que alguém evocou o nome de Gallus. — Pobre sujeito — disse Kornél Esti—, encontrei-o anos atrás - , mas já faz sete ou oito anos, sob condições muito tristes. Foi quando lhe aconteceu algo relacionado com uma novela policial, algo que também havia sido uma história policial, a mais emocionante e mais dolorosa que já vivi. Porque vocês o conheciam, um pouco, ao menos. Era um garoto talentoso, eletrizante, intuitivo, consciencioso e culto também. Falava várias línguas. Sabia inglês tão bem, que dizem que o príncipe de Gales tomara aulas particulares com ele. Havia morado quatro anos em Cambridge.


Mas tinha um defeito fatal. Não, não bebia. Mas surrupiava tudo que estava ao alcance de sua mão. Roubava como uma ave de rapina. Tanto lhe fazia se se tratava de um relógio de bolso, chinelos ou um enorme duto para chaminé. E não se preocupava também com o valor dos artigos roubados, nem com o seu volume e dimensões. Geralmente não se importava com a sua utilidade. Seu prazer consistia simplesmente em fazer aquilo que queria: roubar. Nós, os seus amigos mais próximos, nos esforçávamos para trazê-lo à razão. Falávamos à sua alma, carinhosamente. Repreendíamos e ameaçávamos. Ele concordava conosco. Prometia sempre lutar contra sua natureza. Mas a razão não vencia, sua natureza era mais forte. Sempre recaía.


Quantas vezes desconhecidos não o repreenderam, e não o humilharam em lugares públicos, quantas vezes não o flagraram, e, nessas ocasiões, tínhamos de tomar atitudes inacreditáveis para minimizar as conseqüências de seus atos. Certa vez, porém, no expresso para Viena, foi surpreendido por um comerciante morávio ao aliviá-lo de sua carteira, e entregue à polícia na estação mais próxima. Trouxeram-no algemado para Budapeste.


Tentamos salvá-lo de novo. Vocês, que escrevem, sabem que tudo é decidido pelas palavras: tanto o valor de um poema como o destino de um homem. Tentamos provar que ele era um cleptomaníaco e não um ladrão. Aquele que conhecemos geralmente é cleptomaníaco. Aquele que não conhecemos geralmente é ladrão. O tribunal não o conhecia; assim foi qualificado — ladrão, e condenado a dois anos de prisão.


Depois de libertado, numa sombria manhã de dezembro, próximo ao Natal, apareceu-me, esfomeado, esfarrapado. Jogou-se a meus pés. Implorou que eu não o abandonasse, que o ajudasse, que lhe arrumasse trabalho. Escrever sob seu próprio nome estava fora de qualquer cogitação. Nada sabia fazer, porém, senão escrever. Procurei então um editor honesto e humano, recomendei-o, e no dia seguinte o editor incumbiu-o da tradução de uma novela inglesa de detetives. Era um daqueles lixos com os quais nós não queremos sujar as mãos. Não o lemos. No máximo o traduzimos, usando luvas. Seu título — até hoje me lembro —, “O misterioso castelo do conde Vitsislav”. Mas que importava? Fiquei feliz por ajudá-lo, ele feliz por poder comer e assim começou o trabalho. Trabalhou com tanto afinco que em duas semanas — muito antes do prazo — entregou o manuscrito.


Fiquei extremamente surpreso quando, passados alguns dias, o editor me comunicou que a tradução do meu protegido era totalmente inutilizável, e por isso não estava disposto a pagar nenhum vintém. Não entendi bem. Fui até lá de táxi.


O editor, sem nada dizer, entregou-me o manuscrito. Nosso amigo o datilografara com capricho, numerara as páginas, até as prendera com uma fita com as cores nacionais. Isso era muito dele, pois — acho que já disse —, em questões de literatura, era preciso e escrupulosamente meticuloso. Comecei a ler o texto. Soltei um grito de admiração. Frases claras, mudanças engenhosas, montagens lingüísticas espirituosas se sucediam, muito mais digna que o original. Espantado, perguntei ao editor que defeito tinha encontrado. Ele me entregou original inglês, de forma tão silenciosa quanto fez com o manuscrito, e pediu-me para comparar os dois textos. Por meia hora, mergulhei alternadamente no original e no manuscrito. Ao final, levantei-me consternado. Declarei que ele estava com toda a razão.


Por quê? Nem tentem adivinhar. Estão enganados. Não tentou contrabandear o texto de um outro original. Era realmente “O misterioso castelo do conde Vitsislav”, numa tradução fluente, artistíca, e por vezes poética. Estão novamente enganados. O texto não continha nenhum escorregão. Afinal, ele sabia inglês e húngaro perfeitamente Parem de tentar. Disso vocês nunca ouviram falar. A mancada foi outra. Totalmente outra.


Eu também descobri aos poucos, gradualmente. Prestem atenção. A primeira  frase do original inglês dizia assim: “As trinta e seis janelas do velho castelo, desgastado pelo vento, brilhavam. No primeiro andar, na salão de baile, quatro lustres de cristal iluminavam luxuosamente. Na tradução húngara estava: “As dezessete janelas do castelo, desgastado pelo vento, brilhavam. No primeiro andar, dois lustres de cristal iluminavam luxuosamente Arregalei meus olhos e continuei a leitura. Na terceira página, o escritor inglês dizia: “Com um sorriso irônico, o conde Vitsislav abriu sua carteira recheada e atirou a quantia pedida, mil e quinhentas libras...” Isso foi interpretado da seguinte forma pelo tradutor húngaro: “Com um sorriso irônico, o conde Vitsislav abriu sua carteira e atirou a quantia pedida, cento e cinqüenta libras...”


Tive uma péssima premonição, que — felizmente se tornou uma certeza nos minutos seguintes. Mais abaixo, no fim da terceira página, li na edição inglesa: “A condessa Eleonora estava sentada num dos cantos do salão de baile, vestida para a noite, usando as velhas jóias da família: tiara de diamantes, herdada da sua tataravó, esposa de um príncipe alemão;sobre seu colo de cisne, pérolas verdadeiras de brilho opaco; seus dedos quase se enrijeciam com os anéis de brilhante, safira, esmeralda.


O manuscrito húngaro, para minha grande surpresa, assim trazia: “ A condessa Eleonora estava sentada num dos cantos do salão de baile, vestida para a noite...” Sem mais. A tiara de diamantes, o colar de pérolas, os anéis de brilhante, safira e esmeralda haviam desaparecido. Compreendem o que fizera esse infeliz escritor, merecedor de um futuro melhor? Simplesmente  roubou as jóias de família da condessa Eleonora, e, com a mesma imperdoável leviandade, roubou até o simpático conde Vitsislav, deixando das suas mil e quinhentas libras apenas cento e cinqüenta,e da mesma forma surrupiou dois dos quatro lustres de cristal, e desviou vinte e quatro das trinta e seis janelas do velho castelo desgastado pelo vento. Tudo começou a girar ao meu redor. Minha surpresa só aumentou quando constatei, sem nenhuma dúvida, que essa determinação percorria todo o seu trabalho. Por onde sua pena de tradutor passasse, sempre causava prejuízo aos personagens, mesmo que só se apresentassem naquele capítulo, e, sem respeitar móvel ou imóvel, atropelava a quase indiscutível sacralidade da propriedade privada. Trabalhava de várias maneiras. Na maioria das vezes, os objetos desapareciam sem mais nem menos. Aqueles cofres, talheres de prata, cuja missão era enobrecer o original inglês, não os encontrei em nenhum lugar no manuscrito húngaro. Em outros casos só tirava uma parte, a metade ou dois terços. Se alguém mandava o criado levar cinco malas para a cabine do trem, ele só mencionava duas; sobre as outras três silenciava sorrateiramente. De todos os casos, para mim, o pior — porque isso decididamente mostrava má intenção e falta de hombridade — era que com freqüência trocava as pedras e metais preciosos por outros sem nobreza e sem valor; a platina por lata, o ouro por latão, o diamante por zircotina ou vidro.


Despedi-me do editor, cabisbaixo. Por curiosidade, pedi emprestado o manuscrito e o original inglês. Como estava intrigado pelo verdadeiro enigma dessa novela policial, continuei em casa minha investigação, e fiz um balanço completo dos artigos roubados. Trabalhei sem parar da uma e meia da tarde até seis e meia da manhã. Descobri, finalmente, que nosso desvirtuoso colega escritor apropriou do original inglês, durante a tradução, ilegal e indecentemente, 1.579.251 libras esterlinas, 177 anéis de ouro, 947 colares de pérola, 181 relógios de bolso, 309 brincos, 435 malas, sem falar das propriedades, florestas e pastos, castelos de príncipes e barões, e outros objetos menores, lenços, palitos de dente, campainhas, cuja listagem seriamuito comprida e talvez inútil. Onde colocou todos esses móveis e imóveis que afinal só existiam no papel, no reino da imaginação; qual era a razão do seu furto; a investigação iria muito longe e assim melhor nem especular. Mas tudo isso me convenceu de que ele ainda era escravo de seu vício criminoso, ou da doença, e não existia nenhuma esperança de cura, e não merecia ser amparado pela sociedade honesta. Retirei minha proteção devido à minha indignação moral. Entreguei-o ao destino. Depois, nunca mais ouvi falar dele.

terça-feira, 23 de setembro de 2014

Ressaca de congresso: cadê meus pares?


Assim como quem viaja e, ao retornar, já está planejando a próxima aventura, quem é picado pelo “congress bug” fica com alguns sintomas quando ele acaba. Após este último congresso da ABRATES, em setembro, percebi que as diversas experiências vividas ali geraram uma grande saudade coletiva na maioria, pelos comentários dos colegas em grupos de tradução. Uma saudade que, em tese, só passará no próximo ABRATES, em São Paulo. E talvez nem assim.

Para quem já foi a algum congresso, conheceu muitas pessoas especiais, levou consigo várias ideias preciosas e teve a chance de reviver tudo isso, essa saudade só tende a aumentar e a ir se transformando numa uma espécie de nostalgia, ou “ressaca de congresso”. Em resumo, aquele mal-estar provocado pelo afastamento dos nossos mais novos e antigos colegas, por ter passado um fim de semana praticamente “em claro”, dada a intensidade das trocas e “libações” que podem ter contribuído, literalmente ou não, para essa ressaca que nos pega no dia seguinte ao acordarmos para trabalhar sozinhos.

E como lidar com isso agora? Bom, mais do que manter o contato virtual, parece que existem formas de nos mantermos conectados pelo trabalho para crescermos juntos. Uma sugestão de parceria que, além de aproximar as pessoas, contribui para que todos cresçam cada vez mais, é a prática de feedback entre pares, uma proposta de melhoria contínua para intérpretes apresentada pelas colegas Melissa Mann, Milessa Nakayama, Julia Aidar, Rosana Gouveia e Daniele Fonseca.

O elemento interessante da proposta, que parece se aplicar também à tradução, é que a formação de grupos de prática e avaliação conjunta solidifica a afinidade profissional e pessoal entre aqueles que já se conhecem, ou dá chances para que essas afinidades se manifestem e se desenvolvam ao longo do tempo. E, mais importante: elas contribuem para o nosso autoconhecimento e crescimento como profissionais e seres humanos.

 A ideia de “crowdstudying” entre intérpretes é baseada na escolha conjunta dos temas de estudo, com uma organização prévia que facilita a gestão participativa, pois todos são responsáveis por liderar em algum momento. Para começar, cito inicialmente um resumo da ideia que está disponível no site do Congresso: “A partir de gravações de interpretação simultânea, seguidas de análise e feedback dos colegas do grupo, todos passaram a trabalhar áreas ou técnicas específicas que afetavam seu desempenho. Criou-se um ambiente verdadeiramente colaborativo, onde o crescimento profissional do outro é bem-vindo e estimulado com críticas objetivas e justificadas, que são consequentemente recebidas como oportunidade ímpar de melhoria, concretizada na vida profissional de todos”.

Durante a palestra, as participantes mostraram as regras e os procedimentos básicos para o exercício. Todos os dados importantes (tema, objetivo, datas, instruções, contatos, modelo de avaliação) são enviados ao grupo de e-mail (Google Group, Hangouts), formado por 4 a 6 participantes com níveis variados de experiência. O vídeo escolhido para gravação, com 15 a 20 minutos de duração, é disponibilizado em uma pasta de compartilhamento de arquivos (Google Drive, Dropbox). Um glossário comum é alimentado por todos enquanto se preparam para gravar a interpretação da palestra. Após realizarem a gravação (a primeira, não vale se regravar nesse momento, só após os feedbacks para trabalhar um aspecto de melhoria por vez), os participantes a carregam na pasta do grupo e avisam aos outros. Em seguida, cada participante prepara o feedback para dois colegas, conforme a grade de revezamento estabelecida. Após o envio dos feedbacks, o grupo marca uma reunião (por Skype ou Hangouts) para conversar sobre os feedbacks, trabalhar os aspectos linguísticos e planejar os próximos exercícios.

Esse processo de estudo favorece bastante a igualdade nas diferenças, as críticas construtivas com base em critérios e a amizade entre os colegas, afinal, "o feedback pode ser um gesto fraterno", conforme as apresentadoras colocaram. As conclusões a que chegaram, e acho que nisso todos concordamos, é que “vale a pena investir em si mesmo”, e esse investimento não se faz sozinho, pois sempre precisamos do outro para crescer.

Em um mundo profissional cada vez mais competitivo e individualista, creio que nós, tradutores e intérpretes, temos um diferencial em relação aos outros nichos: sabemos que o outro existe e somos algo porque o outro (autor ou orador) é. Trabalhar pelo “outro” acaba sendo uma forma de nos realizarmos e sermos. E como poderíamos chegar aonde chegamos hoje sem o “outro”, sem as parcerias e as trocas com os colegas? Tudo isso tem um valor imaterial que não podemos medir, somente agradecer. Fica então meu agradecimento pessoal a todos que contribuíram para o meu crescimento, para a realização deste incrível congresso e dos próximos que nos aguardam!

sábado, 6 de setembro de 2014

Missão dada, missão cumprida: a interpretação na luta pelos direitos humanos

Minha primeira opção ao prestar vestibular foi o Jornalismo. Sempre tive paixão pela escrita e a leitura e, além disso, sempre tive vontade de participar dos fatos sociais e de dar voz a diferentes culturas, principalmente as que não são ouvidas. Ainda assim, por diferentes motivos, acabei optando por Letras. Mas, após passar recentemente pelo meu "batismo de fogo" em interpretação, fazendo uma trabalho voluntário de simultânea bilíngue (inglês>português e vice-versa) em uma reunião com os diretores de uma instituição de direitos humanos e membros de movimentos da sociedade civil, acredito que encontrei aquilo que buscava. Parece realmente que Deus “escreve torto por linhas certas”. Assim como nós, intérpretes.

Quem nunca "escreveu torto" ou deu uns escorregões pela vida profissional? Esqueceu-se de palavras-chave do glossário bem quando elas se repetiam na boca do palestrante. Ou mesmo inventou traduções aproximadas para termos muito específicos da cultura nacional ou estrangeira? Palavras como “arrastão”, “gato de luz”, “tapioca”, “pagode”, por exemplo, precisam antes ser explicadas do que traduzidas. E, além delas, há jargões técnicos do direito ou da estrutura prisional brasileira que aparecem bastante em encontros de direitos humanos. Por maior que seja o preparo, a construção de glossários e a troca com nossos pares, às vezes ficamos com a sensação ruim quando o máximo que conseguimos é "escrever torto”. Mas também ficamos com uma sensação boa quando conseguimos interpretar algo extremamente difícil de forma excelente.

Na verdade, nesses encontros, fazemos muito mais do que cobrir lacunas linguísticas, mas permitir que pessoas de mundos totalmente diferentes se entendam ao entrar em contato pela primeira vez. E isso tem um valor tão grande que os pequenos escorregões acabam ficando em segundo plano. Mas precisamos também nos responsabilizar por eles e buscar soluções, pesquisar, estudar, para que contribuam para a melhora em nossas próximas atuações.
Acredito que na vida existem “linhas certas”, ou seja, diferentes caminhos ou atalhos para chegarmos aonde queremos, de maneira justa e solidária. Ainda assim, muitos teimam em entortar as linhas, ou seja, fazer tudo errado e culpar os outros. Este é o caso de forças de segurança, que cometem massacres contra a população pobre ou contra os cidadãos que reivindicam seus direitos, culpabilizando-os por sua condição social, etnia ou qualquer outro motivo que justifique a violência desmedida.

Por isso, foi muito difícil para mim, como intérprete, segurar a emoção ao ouvir relatos mais contundentes. Ainda assim, a capacidade de controlar emoções é essencial para fazermos o nosso trabalho. Considero que nosso mérito é possibilitar que a voz desses sujeitos seja amplificada, alcançando ouvintes de diferentes partes do mundo. E, para isso, é muito importante o apoio psicológico, para que tais emoções não causem traumas indiretos, conforme vemos em casos de intérpretes que atuam em tribunais de guerra e situações militares.

Nesse encontro, tive o prazer de ver pessoas que tiveram a opção de desistir diante das injustiças ou lutar para mudá-las. E escolheram a segunda opção, usando uma arma que tem poder de fogo ainda maior que os fuzis: a palavra.  Se algo de fato for feito por essas pessoas e se eu tiver contribuído minimamente para isso, terei uma sensação de realização muito maior: missão dada, missão cumprida!



segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Se o (seu) mundo fosse acabar, me diz o que você fa(la)ria?


Imagine se, de repente, ninguém mais te entendesse? Seus filhos não quisessem mais ouvir suas histórias nem responder às suas perguntas. Seus segredos de amor ao pé do ouvido não tivessem mais efeito. Ninguém risse mais das suas piadas. Sua música não fosse mais tocada. Você estaria em um imenso vazio até que o mundo quisesse restabelecer a comunicação, certo? Ou, quem sabe, já não estivesse morto sem saber, como no filme O Sexto Sentido?

Talvez seja essa a sensação que as pessoas têm quando suas línguas maternas deixam de ser faladas: um profundo vazio existencial. Podemos pensar, então, que quando uma língua se silencia, um mundo acaba, pois é a língua que serve de suporte à nossa identidade e cultura, nossa riqueza interior e nosso conhecimento de mundo. E, infelizmente, esse será o caso de centenas de pessoas no mundo todo nos próximos 90 anos. 




Na palestra da linguista Kristine Stenzel, no Museu do Índio, como parte do curso Dimensões das Culturas Indígenas, a mensagem foi clara: o patrimônio linguístico mundial está ameaçado e muitas frentes de preservação precisam acontecer logo. Estima-se que haverá a perda de 50% a 90% das 6.000 línguas vernáculas restantes no mundo só neste século. Isso porque os processos de mudança e perda linguística, que são naturais e graduais, avançaram em um ritmo galopante nos últimos 500 anos, com o extermínio das populações étnicas, as migrações, as guerras, a supervalorização das línguas oficiais, a desvalorização de culturas minoritárias e a introjeção da "fobia de si" pelos próprios falantes, que abandonaram suas línguas.



Acredita-se que eram faladas 1.200 línguas no Brasil antes do descobrimento. Hoje, restam cerca de 160, e os indígenas representam 3% da nossa população (300 a 400 mil pessoas). Desse total, apenas 15% dos grupos têm mais de 1.000 falantes. Mas, seja qual for o número de falantes, o fato é que todas as línguas indígenas brasileiras estão ameaçadas de extinção, porque qualquer pequena mudança pode abalar a estrutura desses grupos, alterando, assim, sua situação linguística.



Por outro lado, estão surgindo cada vez mais programas de estudo e documentação de LIBs (Línguas Indígenas Brasileiras). Para quem não sabe, somente no Rio de Janeiro, temos o PRODOCLIN (Projeto de Documentação de Línguas Indígenas), no Museu do Índio, e a Pós-Graduação em LIBs, no Museu Histórico Nacional/UFRJ, por exemplo.


A própria Kristine, da UFRJ, coordena um incrível projeto de documentação das línguas Kotiria e Waikhana no município de São Gabriel da Cachoeira, onde há quatro línguas co-oficiais: o português e três línguas indígenas. Esse movimento em prol da revitalização linguística está ganhando forças no mundo inteiro, e, principalmente, dentro das sociedades indígenas, que buscam apoio para resgatar seus idiomas e práticas culturais, além de capacitação para atuar como professores e documentadores. 


Acho que o segredo dessa força de sobrevivência dos indígenas pode estar na famosa pergunta do Paulinho Moska: se o (seu) mundo fosse acabar, me diz o que você faria? Somente nos colocando no lugar dos povos em declínio, nós, que falamos línguas “seguras”, poderíamos imaginar como é estar do outro lado. Mas , na última Flip, o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro mencionou a possibilidade de a civilização atual, com seu sistema econômico depredador, entrar em um colapso geral em poucos anos. 

Ele proferiu a frase de efeito ao lado que, apesar de contrariar as estatísticas, fala de um modo de vida que realmente funciona: “O mundo deles acabou há cinco séculos e eles estão aí, sobrevivendo, criando, inventando novas formas de expressão. Eles poderão nos ensinar como é possível ser feliz sem cartão de crédito, TV de plasma, computador. Sem essa civilização cuja existência depende da destruição de tudo a sua volta.”

Se o mundo fosse acabar, eu estaria do lado de quem já perdeu o seu mundo e o recuperou, ao menos dentro de si, ou que continua lutando para mantê-lo e revitalizá-lo junto à sua comunidade. Essa sabedoria indígena indica que é possível ir mais longe quando há autodeterminação e que o valor imaterial da cultura, expressa e enraizada nas palavras, é o único valor que não se perde, pois dá sentido à vida. E você, se o  (seu) mundo fosse acabar, o que você fa(la)ria?



sexta-feira, 25 de julho de 2014

Não sei, só sei que não foi assim... (diria Ariano)

“Não sei, só sei que foi assim” é o bordão de Chicó, o covarde protagonista de “O Auto da Compadecida” que, com o esperto João Grilo, consegue driblar a pobreza aplicando golpes e inventando histórias. O Auto da Compadecida foi traduzido e representado em pelo menos em nove idiomas, entre eles o polonês, o tcheco e o hebraico. Daí, me pergunto: como toda essa gente se identificou com uma obra tão local (e difícil de traduzir)?

Talvez seja pela comicidade, pelo jogo cênico das situações ou pelos sedutores traços da cultura ibérica e medieval, presentes na cultura popular nordestina, que foi exaltada e resgatada na obra de Ariano Suassuna. Seu universo ficcional está fincado na realidade nordestina, mas é capaz de levar leitores de várias partes do planeta a um verdadeiro “mundo mítico”, como ele mesmo dizia.

Mitologia, musicalidade, comicidade, filosofia humanista, religião, esperança... esses componentes estão no repertório de autores de agradaram às massas e ao cânone, como Shakespeare. Como não reconhecer em Ariano o mesmo domínio dos ritmos e metros, a ampla capacidade de pesquisa da arte popular e o equilíbrio ao reelaborar esse material com refinamento artístico? Ou, se o valor da obra é reconhecido, por que duvidar de que ele de fato fosse um apaixonado pela cultura popular? Estaria representando um personagem de si mesmo como o pai dos pobres, como mais um aplicador de golpes do seu universo mítico?

Não sei, não, mas acho que ele acaba sendo vítima daqueles que “olham para cima, para o hemisfério Norte em busca de referência, enquanto brota daqui uma cultura riquíssima.” Para homenagear esse artista polêmico, e por isso grandioso, seguem alguns recortes que nos mostram a força da sua palavra e, principalmente, da sua personalidade:

“Eu sou um apaixonado pela vida e eu não fui, como todos nós, eu não fui consultado antes de nascer, se eu queria ou não. Mas se a consulta me fosse feita hoje, eu queria nascer 100 vezes”. (2007)





Revista Fórum em www.revistaforum.com.br

Fórum – Seu Ariano, em muitos textos seus e também no Auto da Compadecida, muitos trechos que o senhor utiliza são de cantorias e de literatura de cordel. Fale um pouco dessa sua profunda relação com a cultura popular da sua região.


Ariano Suassuna – Assisti ao primeiro cantador quando ainda era menino lá na minha terra, em Taperoá, sertão da Paraíba. E naquele dia participava um grande cantador, chamado Antonio Marinho, que, além dos improvisos, cantou um folheto, escrito por ele, que me causou grande impressão. Depois, me lembro de um dia na biblioteca de meu pai. Ele era um grande leitor, sabia versos de cor e era amigo de um escritor cearense chamado Leonardo Motta, que foi um dos pioneiros da documentação sobre os poetas populares. E lembro que estava olhando a biblioteca de casa e vi que ele tinha dedicado um dos seus livros ao meu pai. Dedicou a seis pessoas, entre as quais o meu pai, que é citado como uma das fontes que comunicaram versos a ele. Então, você imagine o orgulho que eu tinha. Eu na biblioteca, pego aquele livro e meu pai está lá como personagem. Foi aí que comecei a ver que aqueles cantadores, que eu tinha ouvido com tanta alegria, eram assunto de livros, que o que eles faziam eram coisas importantes. Ficou sacralizado pra mim o cantador. Não é por acaso, talvez, que quando fui escrever O Auto da Compadecida me baseei em três folhetos. Estão todos os três citados no livro de Leonardo Motta. Foi O Enterro do Cachorro, de Leão de Gomes de Barros, O Cavalo que Defecava Dinheiro, que também acho que é dele, e o Castigo da Soberba, que é dado como de autoria de dois autores folclóricos, Anselmo Vieira de Souza e Silvinho de Pirauá. Eu me baseei nesses três folhetos para fazer o Auto da Compadecida.  


DISCURSO DE POSSE DE SUASSUNA NA ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS, em http://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=13527&sid=305



(...) Quando eu quis que o uniforme que uso agora fosse feito por uma costureira e uma bordadeira do Recife, Edite Minervina e Cicy Ferreira, estava levando em conta a distinção estabelecida por Machado de Assis e uma frase de Ghandi que li aí por 1980, e que me impressionou profundamente. Dizia ele que um indiano verdadeiro e sincero, mas pertencente a uma das duas classes mais poderosas de seu país, não deveria nunca vestir uma roupa feita pelos ingleses. Primeiro, porque estaria se acumpliciando com os invasores. Depois, porque estaria, com isso, tirando das mulheres pobres da Índia um dos poucos mercados de trabalho que ainda lhes restavam.
            A partir daí, passei a usar somente roupas feitas por uma costureira popular e que correspondessem a uma espécie de média do uniforme de trabalho do brasileiro comum. Não digo que fiz um voto, que é coisa mais séria e mais alta colocada nas dimensões de um profeta, como Gandhi, ou de um monge, como Dom Marcos Barbosa. Não fiz um voto; digamos que passei a manter um propósito. Não pretendo passar pelo que não sou. Egresso do patriarcado rural derrotado pela burguesia urbana de 1889, 1930 e 1964, ingressei no patriciado das cidades como o escritor e professor que sempre fui. Continuo, portanto, a integrar uma daquelas classes poderosas, às quais fazia Gandhi a sua recomendação. Sei, perfeitamente, que não é o fato de me vestir de certa maneira, e não de outra, que vai fazer de mim um camponês pobre. Mas acredito na importância das roupagens para a liturgia, como creio no sentido dos rituais. E queria que minha maneira de vestir indicasse que, como escritor pertencente a um País pobre e a uma sociedade injusta, estou convocado, “a serviço”. Pode até ser que o País objete que não me convocou. Não importa: a roupa e as alpercatas que uso em meu dia-a-dia são apenas uma indicação do meu desejo de identificar meu trabalho de escritor com aquilo que Machado de Assis chamava o Brasil real e que, para mim, é aquele que habita as favelas urbanas e os arraiais do campo. (...)


José Celso Martinez Corrêa, dramaturgo: 
(http://oglobo.globo.com/cultura/livros/personalidades-lamentam-morte-de-ariano-suassuna-13355795#ixzz38Wl30FHR)

"Ariano nasce em meio à aristocracia rural de Recife, e então ele relaciona com intensa paixão esse passado culto com toda a cultura popular. Essa é a importância dele e do seu teatro. Hoje observamos um teatro cada vez mais desligado do povo, por conta de todo esse colonialismo cultural. Então as pessoas olham para cima, para o hemisfério Norte em busca de referência, enquanto brota daqui uma cultura riquíssima. Então ele representa essa aristocracia rural transmutada pela cultura popular. Uma confrontação entre forças correntes que o atravessam e acabam se transando. O 'Auto da compadecida' é uma obra-prima, um clássico da literatura mundial, que fez emergir toda a potência do popular, assim como fizeram os grandes. Ele era um nobre artista, como foi Tolstói, está no DNA de toda a humanidade, assim como Cervantes. Quando alguém desse tamanho morre, imediatamente se torna imortal. E a partir daí, no curso da História, Ariano vai aparecer e sumir, aparecer e sumir, aparecer e sumir..." 


sábado, 12 de julho de 2014

Maracandanças

Com a esperada final no Maracanã, a Copa no Brasil vai chegando ao fim. O resultado, infelizmente, não era o esperado por nós, e a seleção e a equipe técnica terão muito o que pensar daqui pra frente para tentar reassumir sua posição na elite no futebol. Mas e para o time de tradutores/intérpretes brasileiros, quais foram os saldos positivos e negativos do evento? E o que ganhamos com essa experiência como povo afinal?

O esporte e a língua são umas das poucas coisas que realmente unem o brasileiro em meio à diversidade cultural. Mas traduzir esportes não é uma tarefa fácil como se pensa. Segundo o tradutor Luciano Monteiro, em Found in Translation, “o Brasil é um país com duzentos milhões de técnicos de futebol. Todos acham que são especialistas”. Logo, qualquer falha que deflagre que o tradutor/intérprete é inexperiente ou não entende bem do assunto imediatamente salta aos olhos e dói nos ouvidos da audiência. E mais: a linguagem, apesar de todo o seu jargão técnico, precisa ser acessível e interessante para todo tipo de público. Isso não é nada fácil de fazer, ainda mais para quem está acostumado a interpretar em conferências formais ou traduzir textos muito técnicos.

Além disso, o menor erro de interpretação pode até mesmo instilar animosidades entre os oponentes, como ocorreu na Copa de 2010, em que “We are going for a win” (Vamos jogar em busca da vitória) foi traduzido como “We are going to win” (Vamos vencer). Em outra ocasião, narrada em Found in Translation, quando um repórter perguntou a Diego Maradona sobre seu hábito de abraçar e beijar os jogadores, Maradona entendeu que a pergunta insinuava que ele fosse homossexual e respondeu se defendendo. Embora o intérprete tenha traduzido a pergunta corretamente, acabou sendo culpado pelo incidente.

Muito se falou das experiências negativas com interpretação nas coletivas de imprensa, seja por questões técnicas ou pela contratação de profissionais não especializados, mas as boas experiências não ganharam o mesmo destaque. Alguma crítica à interpretação simultânea em vários idiomas que está viabilizando o programa É Campeão!, no ar pelo SporTV? Que eu saiba, não; a equipe de intérpretes está mesmo batendo um bolão!

E o programa de interpretação voluntária Rio Amigo, do qual participei, que oferece interpretação telefônica gratuita para sete idiomas? Alguém ouviu falar? Talvez poucos soubessem da existência do serviço, que foi divulgado principalmente por seus participantes em campanhas nos estabelecimentos na zona sul do Rio de Janeiro.

Imagino que muitos intérpretes competentes que ouvi nas coletivas de imprensa importantes ou que acompanharam as seleções de perto tenham talvez até se tornado bons amigos de seus clientes, o que não é raro em função da proximidade que o trabalho exige. E muito do trabalho de tradução e interpretação também não passou pelas câmeras. Todo material de sinalização nas ruas e nos meios de transporte, por exemplo, foi traduzido ao menos para o inglês, e o feedback dos visitantes foi positivo.

Para o povo em geral, o verdadeiro legado da Copa foi, principalmente, imaterial. Só quem viveu a experiência de receber os turistas em casa, transitar pelas ruas como se estivesse na Torre de Babel, arranhar um pouco de inglês para ajudar um torcedor estrangeiro ou travar boas conversas com pessoas de diferentes nacionalidades nas mesas de bares lotados das cidades poderá medir a importância do evento com base na sua experiência.

Em minhas “maracandanças” pensando na campanha Love Your Translator, foi inevitável relembrar que entrei na profissão de tradução/interpretação graças a um evento esportivo: os Jogos Pan-Americanos de 2007. Na UERJ, onde estudei, participei de um projeto-piloto de interpretação para taxistas cadastrados pelo Ministério do Turismo. Assim, o valor que essa experiência teve para mim foi definitivo, em termos materiais e imateriais: ela me trouxe um norte de mudanças.


Acredito que para a atual seleção brasileira o legado talvez tenha sido mais doloroso, mas não diferente: mudanças! Após a derrota, vem a frustração, as necessidade de se repensar, se criticar, se recriar... E não é isso o que fazemos dia a dia? Não são muitas vezes os fracassos que nos mostram novos caminhos? Por que não encarar a derrota temporária como uma vitória da verdade da emoção sobre a arrogância do orgulho, da força de vontade interior sobre a pressão externa, o que nos dá tempo de ganhar fôlego renovado para as próximas partidas?


Em nossa experiência coletiva, as andanças pelos arredores um tanto míticos do Maracanã sempre poderão nos lembrar daqui pra frente da derrota como algo nem sempre negativo, mas que gera mudanças, para crescermos sempre como pessoa, povo, profissionais e craques da arte de viver. E aos que serão abraçados pelo estádio na final, a última recordação: o que importa mesmo é o amor pela arte de jogar, e só ama quem aceita as falhas dos seres amados, ou jogadores. Então, bola pra frente, e que vença quem mais amou!


segunda-feira, 2 de junho de 2014

Odeon: ame-o ou deixe-o - LYT no Rio, parte II


Estava pensando em como escrever o segundo texto da campanha Love Your Translator, dedicado aos legendadores e dubladores. É uma tarefa desafiadora, pois basta fazer uma pesquisa no Google sobre "tradução de filmes" para vermos apenas críticas negativas. Mas ao ler a triste notícia no Facebook do Sindicato das Empresas Exibidoras Cinematográficas do Rio de Janeiro de que o tradicional Cine Odeon teria encerrado suas atividades, tive "suspiração" para a escrita. Como assim, será verdade isso? 
 
O site UOL nega essa informação, com base na declaração de Marcelo França Mendes, diretor do Grupo Estação: "Pessoal, em princípio o fechamento é provisório. O Odeon completará 90 anos em 2016 e um senhor dessa idade precisa de 'check up' periódico. Temos muitas coisas de manutenção urgentes a serem feitas e optamos por fechar durante a Copa porque, se houver manifestações como no ano passado na Cinelândia, nem valeria a pena abrir. Não há data ainda de reabertura porque ainda estamos fechando o patrocínio para essas intervenções. Mas, por enquanto, ainda não é 'the end'".
 
O fim das atividades do Odeon seria um fato minimamente preocupante para os tradutores ligados à indústria do cinema, pois este é o local oficial de eventos que oferecem oportunidades de trabalho sazonais, como o Festival do Rio, o Anima Mundi, o Curta-Cinema, entre outros. E isso nos leva a esclarecer as diferenças entre dois campos de trabalho distintos para os tradutores: a legendagem e a dublagem. A maior parte do público a quem essas traduções se destina confunde as áreas ou pensa que são a mesma coisa. Quase sempre surgem dúvidas, como: Por que a fala do personagem tá diferente? Por que o título do filme mudou? Vejamos primeiro as diferenças gerais e depois as dúvidas.

Segundo Renato Rosenberg, em Conversas com tradutores, como a tradução para legendagem é escrita, ela segue a norma culta; já ó texto traduzido para a dublagem deve levar a interpretação do ator em consideração e se aproxima mais da linguagem oral. A legendagem também precisa resumir ao máximo uma ideia, respeitando as limitações de caracteres na tela e o tempo de leitura, para que o espectador consiga ler. Os textos dublados também muitas vezes são cortados para “caber na boca” do personagem, mas todas as reações dos personagens precisam ser descritas. Quanto à complexidade do processo tradutório, cada tipo de filme é voltado para um para um público diferente e demanda pesquisas diversas, desde terminologias específicas usadas em um documentário a gírias e piadas de filmes de comédia. E cada empresa possui regras diversas em relação a termos, como palavrões, por exemplo, que muitas vezes precisam ser suavizados. As referências culturais em alguns casos também são adaptadas ao público brasileiro, como expressões idiomáticas referentes ao beisebol (que aqui podem ser substituídas pelo futebol). Mas em outras situações isso não é mais necessário, pois com a globalização mais pessoas estão tendo acesso a informações culturais de outros países e conseguem captar referências a celebridades e marcas de produtos internacionais, por exemplo.

Tudo isso responde à primeira dúvida e explica a necessidade de adaptação das falas dos personagens em muitas situações. Já a pergunta sobre os títulos dos filmes é respondida por Ulisses de Carvalho no seu site Tecla SAP de forma direta: “porque o tradutor não tem nada a ver com essa questão”. Veja detalhes aqui: http://www.teclasap.com.br/traducao-titulos-de-filmes/

Reforçando a temática da campanha “Love your Translator”, vamos finalizar com uma avaliação das críticas recebidas pelos legendadores e tradutores para dublagem, tanto do público quanto da imprensa.
 
Para o primeiro caso, Ulisses de Carvalho nos oferece no Tecla SAP mais um bom conselho: “Um dos passatempos nacionais é falar mal de legendagem. Encontrar erro no serviço dos outros é fácil e divertido. Fazer serviço sem erros é mais difícil e, provavelmente, menos divertido. Essa história de ficar catando erro em serviço dos outros é perda de tempo. Quando você encontra um erro no serviço de um colega, não aprende nada: se você encontrou uma tradução e notou que estava errada, é porque já sabia. Melhor ficar procurando os acertos, aquelas sacadas em que você jamais tinha pensado, soluções que nunca tinham passado pela tua cabeça. E legendagem é sempre uma lição extraordinária para todos nós, mesmo quando não é nenhum primor de trabalho.”

Por isso a crítica de legendas sempre me incomodou: porque é preciso ter acesso ao original para fazê-lo e, de preferência, entender do assunto. A crítica a um erro específico de um trecho, por exemplo, talvez por falta de atenção ou conhecimento do tradutor, não é uma crítica do processo de tradução em si, mas uma crítica gratuita, que fala mais sobre o ego do crítico do que qualquer outra coisa.

Quanto aos dubladores, Renato Rosenberg nos traz uma boa reflexão: “Nós, da dublagem, sempre tivemos problemas com a imprensa em relação ao nosso trabalho. Embora haja uma lei (...) dizendo que toda dublagem deve ser feita em território nacional, os distribuidores ‘esquecem’ disso e (os estúdios de dublagem nos Estados Unidos) pegam qualquer brasileiro que queira ‘fazer um bico’, sendo ator ou não, para dublar. Nem preciso dizer que o resultado beira o ridículo. Mas boa parte da imprensa prefere dar nota zero para a dublagem de determinado filme, sem mencionar este fato. Não sei se por falta de hombridade ou de conhecimento do assunto. Mas... se quem faz isso não conhece o assunto, por que escreve sobre ele?”

Entender melhor o trabalho do tradutor faz com a gente pense antes de criticar uma legenda ou de se negar a oportunidade de assistir a um filme dublado. E mais: pense nos deficientes visuais e nas crianças, por exemplo, que realmente precisam da dublagem. Isso por si só já não seria um motivo para amarmos um pouco mais os legendadores e dubladores?

Daí se conclui que a tradução não é essencialmente ruim ou boa, mas um componente, em geral imperceptível, que torna a experiência no cinema viável para alguns e mais rica para outros –  este é o meu caso, pois sou fã de traduções. Para os que não gostam, OK, basta esperar o filme sair em DVD ou usar a tecla SAP, mas esses de alguma forma vão deixar de aprender alguma lição com o trabalho do profissional da tradução. É isso: "tradutor: ame-o ou deixe-o".

 

 

sábado, 24 de maio de 2014

Amor rima com tradutor – LYT no Rio

Não deu pra resistir: me apaixonei de cara pela campanha LOVE YOUR TRANSLATOR! Ela é organizada por duas tradutoras que pretendem aumentar a visibilidade da profissão perante a sociedade, em todo o mundo, por intermédio das redes sociais. Os interessados em participar recebem um kit de adesivos que manifestam o amor pela profissão, o qual secretamente esperamos receber de volta pelos serviços prestados. Fofo, não? Mas seria pedir demais?

E por que um lema tão insinuante quanto o da campanha “Mais amor, por favor” se aplicaria aos tradutores? Ygor Marotta, ao escrever essa frase nos muros de São Paulo, pretendia despertar em seus habitantes gestos de gentileza e respeito ao próximo, como um “bom-dia” ou “obrigado”, segundo sua entrevista para a Marie Claire. Com a internet, ele ganhou aliados e pessoas dispostas a passar a mensagem pra frente, e hoje a frase ganhou vida própria fora de São Paulo. A foto deste painel, por exemplo, foi tirada no Arpoador.

O lema de “Love Your Translator” pode nos remeter a situações parecidas: despertar a curiosidade geral sobre a profissão ou cutucar o preconceito em relação a ela. Assim, quem sabe nosso trabalho seja mais valorizado e nós possamos firmar parcerias felizes, éticas e lucrativas com os clientes, baseadas na gentileza e no respeito mútuo? Parece um tanto utópico, mas o fato é que essa mensagem também está rodando o mundo. Veja as fotos aqui: https://www.facebook.com/loveyourtranslator?fref=ts

Após receber os adesivos, me juntei com um amigo a um grupo de fotógrafos que faria um passeio do Mirante do Leblon até o Arpoador para registrar e apreciar a beleza da cidade. E não haveria lugar melhor para começar o dia: de um lado, a belíssima vista do mar, e do outro, a do imponente Morro Dois Irmãos. Resolvemos começar pelo último, que naquele dia estava parcialmente encoberto: apenas dava para ver o morro da frente. Então a primeira foto acabou não enfocando o morro em si, mas seus arredores.

Ainda assim, a imagem do morro me remeteu ao perfil social do tradutor, descrito nesta fala de Regina Alfarano em Conversas com tradutores: balanços e perspectivas da tradução: “Muito embora mais consciente da presença e do papel do tradutor, a sociedade ainda não lhe foi apresentada condignamente. De maneira geral, a figura do tradutor ainda é vista em meio a uma névoa – sem linhas definidas, sem um perfil claramente delineado”.

Essa “névoa” poderia ter relação com a própria invisibilidade textual e (consequentemente) social do tradutor. Como sua tarefa é produzir textos que não pareçam traduzidos, quem lê traduções geralmente não percebe que ali existe um trabalho humano, principalmente quando o nome do profissional não é citado. Ou apenas notam-se os erros. Ou então se pode pensar que traduzir é fácil demais: basta conhecer os idiomas, ter dicionários, glossários e acesso à internet. Enquanto nós sabemos que essa visão é equivocada, pois na verdade traduzimos culturas, umas das tarefas mais complexas que poderiam existir.

Muitas vezes também se traça uma relação direta entre invisibilidade e má remuneração, com base na corrente teórica proposta por Venutti.  Paulo Henriques Britto, em A tradução literária, sugere que isso não procede no que diz respeito à invisibilidade textual: "Se assim fosse, os cirurgiões plásticos e os restauradores de obras de arte seriam mal pagos. Não consta que eles deixem marcas visíveis nos narizes de seus pacientes para que todos saibam que a beleza de um rosto se deve, na verdade, a uma intervenção cirúrgica (...). Em ambas as profissões, a invisibilidade da intervenção do profissional é uma parte fundamental de seu trabalho, e nem por isso sua remuneração é insuficiente”.

Ainda assim, muitos de nós julgamos que em muitos casos a nossa remuneração não é suficiente de fato. Mas isso pode estar relacionado a outros fatores, como falta da organização da classe; liquidez do mundo globalizado, que torna a vida útil das informações curta e descartável; as leis públicas, que não estão atendendo às necessidades da categoria profissional; e a própria falta de regulamentação, que não exige formação específica para se trabalhar como tradutor.
 
Diante desse quadro, a campanha pode parecer utópica. Mas quem pode mudar essa situação senão nós mesmos? As redes sociais e humanas têm um potencial grande de convergir pessoas e estimular mudanças, como temos visto em movimentos juvenis em várias partes do mundo. Já dizia Eduardo Galeno: “somos o que fazemos, mas somos, principalmente, o que fazemos para mudar o que somos.”


Por que não distribuir um pouco de amor próprio e de amor ao próximo por aí? Dar e cobrar mais respeito e gentileza? Se você se interessou, então, mãos à obra! Ajude a divulgar ;-)

PS:  Gostou das fotos? Ainda tem mais! Um superagradecimento ao fotógrafo Everton Santana, que contribuiu com sua arte para colocar essa campanha em foco.

domingo, 4 de maio de 2014

Depois que o paraquedas abre, é fácil ser corajoso (EM)

Tive a oportunidade de participar recentemente como intérprete observadora de uma reunião em uma grande ONG. No evento, além de intérpretes profissionais, havia colegas iniciantes. Os idiomas de trabalho eram inglês e espanhol, e a plateia era formada por participantes da América Latina, com seus variados sotaques, além de palestrantes anglófonos, uma com sotaque australiano e outro com sotaque irlandês. Isso poderia tornar tudo mais complicado, não fosse o ambiente amigável para a interpretação.
 
Com o auxílio da coordenação de línguas, que forneceu bastante material para o preparo dos intérpretes, além do aparato técnico necessário, as sessões transcorreram bem. Os palestrantes, que provavelmente estão acostumados a ser interpretados, contribuíram para a qualidade da interpretação simultânea, falando em um ritmo razoável, pausado e claro.
 
Mas também não faltaram momentos de adrenalina. Quando as opiniões ficavam inflamadas, ou quando havia pouco tempo para a fala, e os participantes tendiam a falar na velocidade da luz. E, além disso, as palavras traziam uma carga emocional muito maior, um subtexto de intenções, pois aqueles participantes estavam principalmente tratando de direitos humanos e dando voz às vítimas de seus países.

 Nesses momentos, ao tentar fazer o exercício mental e racionar como se eu estivesse interpretando, tendo que pensar o que ouvia em espanhol e passar imediatamente para inglês, por exemplo, o esforço de memória começou a afetar a compreensão, e de repente me vi habitando um mundo em que não sabia mais que língua estava sendo falada, literalmente “lost in translation”.
 
Por isso, acredito que a primeira grande dificuldade dos intérpretes iniciantes na cabine é fazer o ajuste do input/output mental e a rápida transição de canais mentais conforme muda o idioma de entrada/saída, apertando também os botões certos da central, para evitar aquele silêncio em que todos se viram para a cabine. Além disso, há o peso da responsabilidade diante de todos os presentes, o medo de errar, o ritmo da fala de cada um, o sotaque e a carga emocional, que contribuem para tornar a tarefa mais complicada.
 
No entanto, esse trabalho foi muito bem-feito naquele dia. Foi inspirador ver os colegas trabalhando com alto nível de profissionalismo, qualidade de voz, transmitindo o conteúdo com precisão, fluência e entoação correta... Sucesso total! E, diante desse modelo de perfeição, acredito que uma qualidade antecede todas as outras para que o intérprete iniciante possa engrenar: a coragem! Ela se sobrepõe ao medo de não estarmos à altura desses padrões. Ela transforma a experiência difícil do iniciante em aprendizado e nos faz crescer diante das frustrações. Afinal, se não aprendermos a acreditar na gente, no futuro não seremos diferentes de agora.
 

Ewandro Magalhães fala de exercícios de dessensibilização do medo para que os intérpretes iniciantes possam reduzir sua ansiedade. Um deles é uma analogia ao paraquedismo, por exemplo, pois a ansiedade pode aumentar muito nos minutos antes do salto. Mas pode-se pensar que a chance estatística de dar errado é só de 1%, se tudo tiver sido preparado de acordo. E a ansiedade só dura até a queda; dali em diante, todos os santos ajudam. Na cabine também: se o intérprete se preparar, há chances de ele se virar melhor nos 30, pois a ansiedade dá lugar à adrenalina.
 
E a coragem é também o elemento-chave que reúne aquelas pessoas para dar voz a vítimas de questões sociais tão diversas, como tortura, direitos reprodutivos, prisioneiros de consciência etc. No final das contas, para fazermos qualquer coisa que valha a pena nesse mundo, é preciso coragem para começar, de preferência com o pé direito! Por isso, deixo aqui meu muito obrigado aos organizadores e colegas presentes pela primeira porta aberta nesse sentido, o que me trouxe muita motivação para continuar buscando.

terça-feira, 29 de abril de 2014

A torre de babel brasileira: parem o mundo que eu quero descer!


A capa do novo disco dos Titãs, Nheengatu, foi inspirada no mito da torre da Babel e, segundo a banda, simboliza “um paradoxo pela associação da imagem de uma torre destruída pela falta de entendimento com uma língua criada para favorecer o entendimento (o Nheengatu), retratando contradição do Brasil atual”.

De cara, várias palavras me chamaram atenção: paradoxo, Nheengatu e contradição do Brasil atual. Isso porque elas estão perfeitamente intricadas. Veja só:
 
PARADOXO

 O mito: segundo o Antigo Testamento (Gênesis 11,1-9), torre construída na Babilônia pelos descendentes de Noé com a intenção de eternizar seus nomes. A decisão era fazê-la tão alta que alcançasse o céu. Essa soberba provocou a ira de Deus que, para castigá-los, confundiu-lhes as línguas e os espalhou por toda a Terra. Entende-se essa história como uma tentativa dos povos antigos de explicarem a diversidade de idiomas.
 
Os fatos: ainda restam no sul da antiga Mesopotâmia ruínas de torres que se ajustam à torre de Babel descrita pela Bíblia (que, aliás, não teria a ver com a torre da pintura de óleo de Pieter Brueghel, localizada nas terras baixas e férteis de Flandres). Arqueólogos relacionam o relato bíblico da Torre de Babel com a queda do famoso zigurate de Etemenanki, na Babilônia. Babel, capital do Império babilônico, era uma cidade-estado extremamente rica e poderosa que  recebia um grande número de imigrantes de diversas nacionalidades, falantes de diferentes idiomas.

A etimologia: conforme Adail Sobral em Dizer o 'mesmo' a outros: ensaios sobre tradução, o próprio termo babel é paradoxal: vem de um termo hebraico que significa "portão de Deus", mas se aproxima da palavra hebraica balal, que significa "confundir". Essas duas palavras refletem pontos de vista de certo modo contrários entre si, usadas pelos judeus antigos para se referir à Babilônia. E esses termos também designavam “país estrangeiro”, sugerindo que a “globalização” já era realidade na época, com início datado na época das grandes navegações.

A moral da história: a própria palavra Babel já denota o choque de sentidos com o qual o tradutor se depara, pois as palavras sempre refletem um ponto de vista cultural sobre algo, uma construção, e não um significado fixo. Esse ato babélico de interpretar, evitar a “confusão” e “abrir os portões celestes" da comunicação está sujeito à incompreensão, como qualquer ato humano, e é permeado de ambiguidades. Do mito, depreende-se que o mundo nasceu "babélico", fruto da diferença, e não da uniformidade. O processo de globalização é intrínseco ao fato de o mundo ser composto por povos diferentes que entram em contato. Daí, o que torna a comunicação possível é o reconhecimento dessas diferenças, e também do que torna diferentes universos culturais compatíveis entre si.

 
NHEENGATU

 

Entre os séculos XV e XVI, sucessivas migrações de nativos do litoral sul para o norte do país, principalmente após a chegada dos colonizadores, contribuíram para o surgimento de uma língua franca de base tupi, o Nheengatu, falado em todo o território nacional até o século XIX. O Nheengatu acabou se firmando como língua de comunicação interétnica, usada em diversos ambientes, como escolas, igrejas, nas aldeias e nas relações de trabalho, principalmente na Amazônia, até mesmo após a Independência!

No litoral brasileiro, uma das primeiras providências tomadas para garantir a comunicação entre índios e portugueses foi a formação dos línguas (ou intérpretes) em centros de especialização de tradutores do discurso religioso em Língua Brasílica (ou Nheengatu). Isso porque os índios não falavam português entre si e nem com o colonizador.  E as línguas indígenas não foram escolhidas para comunicação em razão do preconceito dos missionários, que as consideravam "línguas brutas e de brutos, sem livro, sem mestre e sem guia".

Com a progressiva dizimação dos povos indígenas, a extinção de várias línguas nativas e a consequente expansão do Nheengatu, posteriormente proibido e suplantado pela língua portuguesa por decreto, em meados do século XIX, a função do intérprete tornou-se, em grande parte, dispensável para os povos indígenas brasileiros.

Restam hoje, no Brasil, apenas cerca de 180 línguas nativas, faladas por uma população de 350.000 pessoas. Tais línguas e seus falantes correm verdadeiro risco de extinção, sendo algumas delas registradas pelo Projeto de Documentação de Línguas Indígenas (PRODOCLIN), desenvolvido no Museu do Índio.
 
 
CONTRADIÇÃO DO BRASIL ATUAL

Uma análise mais aprofundada do destino das línguas que futuramente se tornaram minoritárias no Brasil após o período colonial aponta contradições básicas do país atualmente: Quem são os brasileiros? Quem tem direito a voz? Só quem fala a mesma língua? Só a camada dominante? O que de fato gera desentendimentos: a diversidade de idiomas e culturas ou os preconceitos? Será que a tradução realmente pode facilitar a comunicação?

Num mundo babélico por excelência e cosmopolita como o de hoje, traduzir se tornou ainda mais difícil, pois, se por um lado, há maior comunicação e contato, há também uma busca maior por segurança, e os grupos se retraem em seus mundos locais cada vez mais. Há povos que evitam dialogar com o outro por se iludirem com uma pretensa superioridade inata. Outros preferem se resguardar para preservar sua autonomia. E, no meio disso, há um mundo praticamente sem fronteiras, em que as pessoas se esbarram e precisam se comunicar, mesmo aos trancos e barrancos.

Será que a relação com o outro, com o diferente, sempre foi uma ameaça? Ou um mal necessário? Bakhtin afirma que o outro é vital para nos mostrar o que não podemos perceber sobre nosso próprio ser, mas que o encontro com o outro só é positivo se o sujeito voltar a si mesmo depois, apesar de ser constituído exatamente por essa relação.
Como a tradução é uma negociação específica entre dois diferentes, o tradutor/intérprete sempre precisa percorrer esse lugar do outro (idioma estrangeiro) e voltar para si mesmo (idioma nativo). Ele não pode apagar essas diferenças nem impô-las ao diferente, e sim criar numa língua sentidos, sempre mutáveis, que foram criados em outra.
Basta que para isso se valorize a beleza dos paradoxos sociais, culturais e tradutórios de uma cultura tão rica como a nossa, pois eles revelam as contradições do Brasil sob a ótica da necessidade e do respeito à diversidade.

A tradução e a interpretação ainda são poderosas ferramentas de manutenção da pluralidade linguística e cultural dos povos brasileiros em meio ao mundo globalizado, pois, afinal, não somos macacos!

Já os detalhes sobre o papel da tradução/interpretação ficam para o próximo post. ;-)