segunda-feira, 30 de julho de 2012

A língua e o relógio (ou um passeio pela língua portuguesa)

“Vejo o revisor como um relojoeiro (profissão do meu avô Archimedes), sempre debruçado sobre um relógio e suas peças minúsculas, nossa língua e suas regras, mexendo em suas engrenagens para que esse relógio nunca pare de funcionar.”

Esse trecho foi escrito em 2002, revelando que há muito estas duas paixões se entrelaçam em minha vida: a língua portuguesa e o tempo. Tal obsessão me levou a visitar o Museu da Língua Portuguesa em São Paulo.


Que bela visão da nua e decadente Estação da Luz, "da dura poesia concreta de tuas esquinas, da deselegância discreta de tuas meninas." Sua arquitetura neoclássica é parte inglesa, parte francesa, mas o relógio em si denota o toque francês: o número 4 em algarismo romano está escrito “errado” (IIII). Embriagada pelo calor local, me despreguei da excursão e adentrei o museu.

No primeiro andar, descobri muitas coisas sobre o amadinho Jorge. Esse baiano contador de “causos” mostrou como somos coloridos, miscigenados, supersticiosos, maliciosos. E dizia ele: "Que outra coisa tenho sido senão um romancista de putas e vagabundos? (...) Na literatura e na vida, sinto-me cada vez mais distante dos líderes e dos heróis, mais perto daqueles que todos os regimes e todas as sociedades desprezam, repelem e condenam."


Nesse buraquinho na parede, li um texto delicioso que me despertou sonhos estranhos à noite. Curioso? Pena que esta câmera é péssima. E o sonho, infelizmente, nada teve a ver com sexo, mas com meu pé ficando preso nesse buraco na hora da prova do Detran!

Não sabia que a lei brasileira que garante liberdade de culto religioso no Brasil é de autoria de Jorge Amado. Ele foi eleito deputado federal pelo Partido Comunista Brasileiro.


No segundo andar, há a seção permanente "Palavras cruzadas", onde estão expostos objetos de museu e do cotidiano, mas não menos valiosos – coisas concretas trazidas pelos falantes de mundos indígenas, africanos, europeus e asiáticos que formaram o português do Brasil. Mais do que peças antigas, pedaços da criatividade dos povos. Peças vivas! Em um dos vários terminais de consulta, descobri de onde surgiu o reles “camelô” da Uruguaiana. Nunca imaginaria!



No último andar, após a exibição de um belo vídeo, chegamos ao suprassumo do museu: a tela de cinema é suspensa e revela em um grande salão: o Planetário das palavras. Rolaram várias apresentações multimídia de poesias, algumas retratadas no chão.


Por fim, quando me dei conta, não havia mais a noção de espaço-tempo. Estava totalmente perdida da excursão e queria me perder pra sempre no museu. O relógio estava a meu favor e me sentia mais uma peça de sua engrenagem. No tique-tique-taque do meu coração baiano pulsava aquela sensação de sonho realizado. Sonho humilde, mas fundamental para entender as minhas paixões.

A língua pode sobreviver ao tempo e nunca morrer. Por meio dela estamos vivos e nela nos fazemos imortais, em museus, paredes, pedaços de papel e blogues. Por meio dela sonhamos paixões, revoluções e realizações absurdas, mas o direito ao sonho é o único que o maior ditador, o Tempo, nunca poderá reduzir ou exterminar, somente aumentar.

domingo, 1 de julho de 2012

Mercado de trabalho dos tradutores no RJ TV

Curiousers and curiousers,

Não deixem de assitir à entrevista da professora Maria Paula Frota no jornal RJ TV na semana passada sobre o mercado de tradução.

domingo, 24 de junho de 2012

O futuro que queremos



Ambicioso ou não, o documento oficial da Rio +20, The future we want, foi disponibilizado nos seis idiomas oficiais da ONU, mas ficou sem tradução para o português.
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(Suspiros)
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Agora vamos tentar nos animar com Zeca Baleiro, “Venha provar meu brunch, saiba que eu tenho approach, na hora do lunch, eu ando de ferryboat...”

Bom, considerando que acolhemos uma conferência internacional, oferecemos o brunch, mostramos que temos approach e que a Organização das Nações Unidas representa todas as nações, não caberia à ONU dar o exemplo, incluindo o português como mais um dos idiomas traduzidos, senão oficial? Onde está o legado da Rio +20 para os brasileiros?
 
Bem, sabemos que as coisas não são simples assim... O Brasil hoje ocupa posição hegemônica na América Latina, mas subserviente diante dos Estados Unidos. Somos ainda forçados a aprender espanhol, no âmbito de comércio internacional, e absorver o inglês, nem que seja “na marra”, para estudar na universidade. Existe inclusive o mito de que aqui todo mundo sabe inglês, basta ter feito um ano de cursinho, passado as férias na Disney e pronto! E isso considerando a minoria da população: a classe média-alta.

Com tudo isso, o português vai bem, o Brasil exala identidade nacional apesar da globalização. A ratificação do novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa contribuiu para a unificação do idioma - mais um instrumento político a favor. E do ponto de vista quantitativo, somos o sexto ou sétimo idioma mais falado do planeta. No entanto, parece que a noção de prestígio de um idioma ainda está mais associada a outros fatores, como poderio militar e econômico. Língua é poder.

A tradução teria influência para mudar esse estado de coisas? Por mais absurdo que pareça, penso que SIM. O português não escapa da disputa por espaço. Nesse momento, exigir a tradução seria o diferencial, uma forma de pressão política, importante para o reconhecimento do idioma e da cultura nacional. Não basta receber bem, oferecer o brunch temperado com approach, na hora do lunch, a gente não quer só comida. A gente quer respeito (em português).

domingo, 17 de junho de 2012

Mercado traduzido - Interpretação no Boa Chance

No encarte Boa Chance do Jornal O Globo, a profissão de destaque foi a de Intérprete de Conferências. Finalmente ficou visível a necessidade de bons tradutores/intérpretes no mercado em função da possível demanda na Copa e nas Olimpíadas.

Alguns dados interessantes da reportagem:

- Segundo Roberto Barreto, diretor do Brasillis Idiomas, é possível calcular quanta mão de obra requer um evento de grande porte. Nos Jogos Panamericanos de 2007, ele contratou 100 tradutores para atender a 15 países. Nas Olimpíadas, serão 208 países, então a expectativa é de que sejam necessários ao menos 1.200 intérpretes.
 - De maneira geral, cada empresa de tradução tem um pequeno time fixo de tradutores e intérpretes, além de um cadastro de profissionais autônomos. Isso faz com que a remuneração do intérprete varie de acordo com o volume de tarefas, podendo ficar, em média, de 4 mil a 10 mil reais por mês.


Se você estiver disposto e interessado em navegar por novos mares, saia da toca e não tenha medo de se arriscar. Há cursos de extensão e pós-graduação prestes a começar. Dê uma olhadinha na guia de Cursos e congressos do blog!

Indico também a pós-graduação da Universidade Estácio de Sá, que cursei quando ainda era Gama Filho. O curso de pós-graduação baseia-se no modelo do European Masters in Conference Interpreting (EMCI), seguindo uma progressão coerente de exercícios de memória e reformulação, anotações, interpretação consecutiva e, finalmente, interpretação simultânea. Trabalhamos com CAIT (Computer-Assisted Interpreter Training), além de contarmos com  equipamentos técnicos da MGM e professores excelentes, além de aulas de oratória e organização de eventos. Podemos dizer que estudar interpretação é tudo menos monótono!

Não há santo que aguente...

Ao me inspirar na Sociedade Alternativa para escrever o blog, descobri mais um elemento interessante: o Imprimatur. Este foi um dos símbolos utilizados no selo da Sociedade Alternativa, escrito em letras góticas. Simbolizava a declaração oficial da Igreja Católica de que um trabalho era uma boa leitura conforme seus padrões e dogmas. Em latim, "imprimatur" significa "deixem-no ser impresso".


Fazendo uma analogia ao mundo da tradução, da época medieval para cá, digamos que o selo de qualidade de trabalhos escritos mudou um pouquinho, mas a marca do Imprimatur está aí, pois a tradução sempre esteve sujeita a censuras e críticas. Ewandro Magalhães, em sua obra “Sua majestade, o intérprete”, resume bem a questão: “Dizem que dois intérpretes só concordarão com uma coisa: que o trabalho de um terceiro é uma porcaria.” E assim gira a roda da tradução, infelizmente... Um ranço de alianças e injúrias que vem desde a época em que nosso "guerreiro" São Jerônimo, o santo padroeiro dos tradutores e respeitado intelectual da antiguidade, apresentou sua tradução da Bíblia para o latim.

Muito me agradou saber, ao ler Magalhães, que "Jerônimo pode ter sido santificado depois de morto, mas em vida foi dono de um temperamento irascível. A seu talento para as línguas correspondia uma habilidade não menor para envolver-se em confusões e colecionar adversários." Por outro lado, foi capaz de travar boas amizades com papas e senadores, que lhe encorajavam e apoiavam nas defesas mordazes contra acusações de infidelidade e perversão do original feitas por ilustres linguistas da época. Para isso, invocava até mesmo profetas e evangelistas, demonstrando como estes também fugiram à literalidade para transmitir suas mensagens. Todos os celeumas estão belamente registrados em correspondências, como a carta a Pamáquio.



Apesar de sabermos que as críticas construtivas são um manancial de aprendizado, uma crítica pejorativa, mal fundamentada ou uma ironia proposital podem ferir o espírito e o ego de qualquer tradutor que se preze. E, nessa hora, São Jerônimo ajuda: o "bicho pega", ainda que com palavras civilizadas!

A raiz dessa animosidade, mais uma vez, parece estar na falta de respeito com o trabalho alheio ou na falta de princípios éticos como a imparcialidade e a objetividade. Sabemos que a tradução é uma profissão de risco, pois precisamos interpretar e fazer escolhas o tempo todo, que não necessariamente seriam as mesmas de outro tradutor, do cliente ou do revisor, pois tais escolhas estão intimamente relacionadas à personalidade, à experiência e até mesmo aos valores de cada um. Das questões de estilo podemos chegar aos erros, do mais leves aos mais graves. Precisamos ter humildade para reconhecê-los e aprender com eles. Mas será que algum de nós nunca erra? Por que tentar evidenciar tanto o erro de um colega? Para recalcar os nossos próprios erros ou nos fazer parecer superiores? Ou para denegrir gratuitamente a imagem de outro profissional?

O silêncio diante de uma boa tradução e o escarcéu diante de uma má tradução somente reforçam esse ciclo vicioso. Uma briga de egos e línguas afiadas, com penas esvoaçantes para todos os lados, em que se perde muito tempo e se ganha até uns quilinhos a mais ou a menos por conta do estresse. No entanto, se aqui estamos e vamos "muito bem, obrigado", além de nosso comprometimento e competência, provavelmente estamos recebendo uma forcinha lá do nosso santinho. Para isso, preciso arrematar novamente com Ewandro:

“O legado de Jerônimo talvez seja maior que nós. Talvez não o possamos refutar. Talvez nos cumpra aceitar e admitir essa herança ambivalente de um santo e pecador. Talvez seja mesmo de sombra e luz o mundo dos intérpretes. Talvez seja impossível escolher apenas um lado da moeda. Ambivalente somos todos, na interpretação. Ingênuos e maliciosos, puros e ardilosos, a perfeita efígie de Jano, o deus romano de duas caras, a fitar o futuro e o passado simultaneamente, símbolo da mesma dualidade.”



Fonte: MAGALHÃES JR., Ewandro. Sua Majestade, o intérprete: O fascinante mundo da tradução simultânea. Parábola Editorial. Rio de Janeiro: 2010 (referências ao Capítulo “Guerra é paz”, pp. 167 – 183).