sexta-feira, 25 de julho de 2014

Não sei, só sei que não foi assim... (diria Ariano)

“Não sei, só sei que foi assim” é o bordão de Chicó, o covarde protagonista de “O Auto da Compadecida” que, com o esperto João Grilo, consegue driblar a pobreza aplicando golpes e inventando histórias. O Auto da Compadecida foi traduzido e representado em pelo menos em nove idiomas, entre eles o polonês, o tcheco e o hebraico. Daí, me pergunto: como toda essa gente se identificou com uma obra tão local (e difícil de traduzir)?

Talvez seja pela comicidade, pelo jogo cênico das situações ou pelos sedutores traços da cultura ibérica e medieval, presentes na cultura popular nordestina, que foi exaltada e resgatada na obra de Ariano Suassuna. Seu universo ficcional está fincado na realidade nordestina, mas é capaz de levar leitores de várias partes do planeta a um verdadeiro “mundo mítico”, como ele mesmo dizia.

Mitologia, musicalidade, comicidade, filosofia humanista, religião, esperança... esses componentes estão no repertório de autores de agradaram às massas e ao cânone, como Shakespeare. Como não reconhecer em Ariano o mesmo domínio dos ritmos e metros, a ampla capacidade de pesquisa da arte popular e o equilíbrio ao reelaborar esse material com refinamento artístico? Ou, se o valor da obra é reconhecido, por que duvidar de que ele de fato fosse um apaixonado pela cultura popular? Estaria representando um personagem de si mesmo como o pai dos pobres, como mais um aplicador de golpes do seu universo mítico?

Não sei, não, mas acho que ele acaba sendo vítima daqueles que “olham para cima, para o hemisfério Norte em busca de referência, enquanto brota daqui uma cultura riquíssima.” Para homenagear esse artista polêmico, e por isso grandioso, seguem alguns recortes que nos mostram a força da sua palavra e, principalmente, da sua personalidade:

“Eu sou um apaixonado pela vida e eu não fui, como todos nós, eu não fui consultado antes de nascer, se eu queria ou não. Mas se a consulta me fosse feita hoje, eu queria nascer 100 vezes”. (2007)





Revista Fórum em www.revistaforum.com.br

Fórum – Seu Ariano, em muitos textos seus e também no Auto da Compadecida, muitos trechos que o senhor utiliza são de cantorias e de literatura de cordel. Fale um pouco dessa sua profunda relação com a cultura popular da sua região.


Ariano Suassuna – Assisti ao primeiro cantador quando ainda era menino lá na minha terra, em Taperoá, sertão da Paraíba. E naquele dia participava um grande cantador, chamado Antonio Marinho, que, além dos improvisos, cantou um folheto, escrito por ele, que me causou grande impressão. Depois, me lembro de um dia na biblioteca de meu pai. Ele era um grande leitor, sabia versos de cor e era amigo de um escritor cearense chamado Leonardo Motta, que foi um dos pioneiros da documentação sobre os poetas populares. E lembro que estava olhando a biblioteca de casa e vi que ele tinha dedicado um dos seus livros ao meu pai. Dedicou a seis pessoas, entre as quais o meu pai, que é citado como uma das fontes que comunicaram versos a ele. Então, você imagine o orgulho que eu tinha. Eu na biblioteca, pego aquele livro e meu pai está lá como personagem. Foi aí que comecei a ver que aqueles cantadores, que eu tinha ouvido com tanta alegria, eram assunto de livros, que o que eles faziam eram coisas importantes. Ficou sacralizado pra mim o cantador. Não é por acaso, talvez, que quando fui escrever O Auto da Compadecida me baseei em três folhetos. Estão todos os três citados no livro de Leonardo Motta. Foi O Enterro do Cachorro, de Leão de Gomes de Barros, O Cavalo que Defecava Dinheiro, que também acho que é dele, e o Castigo da Soberba, que é dado como de autoria de dois autores folclóricos, Anselmo Vieira de Souza e Silvinho de Pirauá. Eu me baseei nesses três folhetos para fazer o Auto da Compadecida.  


DISCURSO DE POSSE DE SUASSUNA NA ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS, em http://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=13527&sid=305



(...) Quando eu quis que o uniforme que uso agora fosse feito por uma costureira e uma bordadeira do Recife, Edite Minervina e Cicy Ferreira, estava levando em conta a distinção estabelecida por Machado de Assis e uma frase de Ghandi que li aí por 1980, e que me impressionou profundamente. Dizia ele que um indiano verdadeiro e sincero, mas pertencente a uma das duas classes mais poderosas de seu país, não deveria nunca vestir uma roupa feita pelos ingleses. Primeiro, porque estaria se acumpliciando com os invasores. Depois, porque estaria, com isso, tirando das mulheres pobres da Índia um dos poucos mercados de trabalho que ainda lhes restavam.
            A partir daí, passei a usar somente roupas feitas por uma costureira popular e que correspondessem a uma espécie de média do uniforme de trabalho do brasileiro comum. Não digo que fiz um voto, que é coisa mais séria e mais alta colocada nas dimensões de um profeta, como Gandhi, ou de um monge, como Dom Marcos Barbosa. Não fiz um voto; digamos que passei a manter um propósito. Não pretendo passar pelo que não sou. Egresso do patriarcado rural derrotado pela burguesia urbana de 1889, 1930 e 1964, ingressei no patriciado das cidades como o escritor e professor que sempre fui. Continuo, portanto, a integrar uma daquelas classes poderosas, às quais fazia Gandhi a sua recomendação. Sei, perfeitamente, que não é o fato de me vestir de certa maneira, e não de outra, que vai fazer de mim um camponês pobre. Mas acredito na importância das roupagens para a liturgia, como creio no sentido dos rituais. E queria que minha maneira de vestir indicasse que, como escritor pertencente a um País pobre e a uma sociedade injusta, estou convocado, “a serviço”. Pode até ser que o País objete que não me convocou. Não importa: a roupa e as alpercatas que uso em meu dia-a-dia são apenas uma indicação do meu desejo de identificar meu trabalho de escritor com aquilo que Machado de Assis chamava o Brasil real e que, para mim, é aquele que habita as favelas urbanas e os arraiais do campo. (...)


José Celso Martinez Corrêa, dramaturgo: 
(http://oglobo.globo.com/cultura/livros/personalidades-lamentam-morte-de-ariano-suassuna-13355795#ixzz38Wl30FHR)

"Ariano nasce em meio à aristocracia rural de Recife, e então ele relaciona com intensa paixão esse passado culto com toda a cultura popular. Essa é a importância dele e do seu teatro. Hoje observamos um teatro cada vez mais desligado do povo, por conta de todo esse colonialismo cultural. Então as pessoas olham para cima, para o hemisfério Norte em busca de referência, enquanto brota daqui uma cultura riquíssima. Então ele representa essa aristocracia rural transmutada pela cultura popular. Uma confrontação entre forças correntes que o atravessam e acabam se transando. O 'Auto da compadecida' é uma obra-prima, um clássico da literatura mundial, que fez emergir toda a potência do popular, assim como fizeram os grandes. Ele era um nobre artista, como foi Tolstói, está no DNA de toda a humanidade, assim como Cervantes. Quando alguém desse tamanho morre, imediatamente se torna imortal. E a partir daí, no curso da História, Ariano vai aparecer e sumir, aparecer e sumir, aparecer e sumir..." 


sábado, 12 de julho de 2014

Maracandanças

Com a esperada final no Maracanã, a Copa no Brasil vai chegando ao fim. O resultado, infelizmente, não era o esperado por nós, e a seleção e a equipe técnica terão muito o que pensar daqui pra frente para tentar reassumir sua posição na elite no futebol. Mas e para o time de tradutores/intérpretes brasileiros, quais foram os saldos positivos e negativos do evento? E o que ganhamos com essa experiência como povo afinal?

O esporte e a língua são umas das poucas coisas que realmente unem o brasileiro em meio à diversidade cultural. Mas traduzir esportes não é uma tarefa fácil como se pensa. Segundo o tradutor Luciano Monteiro, em Found in Translation, “o Brasil é um país com duzentos milhões de técnicos de futebol. Todos acham que são especialistas”. Logo, qualquer falha que deflagre que o tradutor/intérprete é inexperiente ou não entende bem do assunto imediatamente salta aos olhos e dói nos ouvidos da audiência. E mais: a linguagem, apesar de todo o seu jargão técnico, precisa ser acessível e interessante para todo tipo de público. Isso não é nada fácil de fazer, ainda mais para quem está acostumado a interpretar em conferências formais ou traduzir textos muito técnicos.

Além disso, o menor erro de interpretação pode até mesmo instilar animosidades entre os oponentes, como ocorreu na Copa de 2010, em que “We are going for a win” (Vamos jogar em busca da vitória) foi traduzido como “We are going to win” (Vamos vencer). Em outra ocasião, narrada em Found in Translation, quando um repórter perguntou a Diego Maradona sobre seu hábito de abraçar e beijar os jogadores, Maradona entendeu que a pergunta insinuava que ele fosse homossexual e respondeu se defendendo. Embora o intérprete tenha traduzido a pergunta corretamente, acabou sendo culpado pelo incidente.

Muito se falou das experiências negativas com interpretação nas coletivas de imprensa, seja por questões técnicas ou pela contratação de profissionais não especializados, mas as boas experiências não ganharam o mesmo destaque. Alguma crítica à interpretação simultânea em vários idiomas que está viabilizando o programa É Campeão!, no ar pelo SporTV? Que eu saiba, não; a equipe de intérpretes está mesmo batendo um bolão!

E o programa de interpretação voluntária Rio Amigo, do qual participei, que oferece interpretação telefônica gratuita para sete idiomas? Alguém ouviu falar? Talvez poucos soubessem da existência do serviço, que foi divulgado principalmente por seus participantes em campanhas nos estabelecimentos na zona sul do Rio de Janeiro.

Imagino que muitos intérpretes competentes que ouvi nas coletivas de imprensa importantes ou que acompanharam as seleções de perto tenham talvez até se tornado bons amigos de seus clientes, o que não é raro em função da proximidade que o trabalho exige. E muito do trabalho de tradução e interpretação também não passou pelas câmeras. Todo material de sinalização nas ruas e nos meios de transporte, por exemplo, foi traduzido ao menos para o inglês, e o feedback dos visitantes foi positivo.

Para o povo em geral, o verdadeiro legado da Copa foi, principalmente, imaterial. Só quem viveu a experiência de receber os turistas em casa, transitar pelas ruas como se estivesse na Torre de Babel, arranhar um pouco de inglês para ajudar um torcedor estrangeiro ou travar boas conversas com pessoas de diferentes nacionalidades nas mesas de bares lotados das cidades poderá medir a importância do evento com base na sua experiência.

Em minhas “maracandanças” pensando na campanha Love Your Translator, foi inevitável relembrar que entrei na profissão de tradução/interpretação graças a um evento esportivo: os Jogos Pan-Americanos de 2007. Na UERJ, onde estudei, participei de um projeto-piloto de interpretação para taxistas cadastrados pelo Ministério do Turismo. Assim, o valor que essa experiência teve para mim foi definitivo, em termos materiais e imateriais: ela me trouxe um norte de mudanças.


Acredito que para a atual seleção brasileira o legado talvez tenha sido mais doloroso, mas não diferente: mudanças! Após a derrota, vem a frustração, as necessidade de se repensar, se criticar, se recriar... E não é isso o que fazemos dia a dia? Não são muitas vezes os fracassos que nos mostram novos caminhos? Por que não encarar a derrota temporária como uma vitória da verdade da emoção sobre a arrogância do orgulho, da força de vontade interior sobre a pressão externa, o que nos dá tempo de ganhar fôlego renovado para as próximas partidas?


Em nossa experiência coletiva, as andanças pelos arredores um tanto míticos do Maracanã sempre poderão nos lembrar daqui pra frente da derrota como algo nem sempre negativo, mas que gera mudanças, para crescermos sempre como pessoa, povo, profissionais e craques da arte de viver. E aos que serão abraçados pelo estádio na final, a última recordação: o que importa mesmo é o amor pela arte de jogar, e só ama quem aceita as falhas dos seres amados, ou jogadores. Então, bola pra frente, e que vença quem mais amou!