sábado, 24 de maio de 2014

Amor rima com tradutor – LYT no Rio

Não deu pra resistir: me apaixonei de cara pela campanha LOVE YOUR TRANSLATOR! Ela é organizada por duas tradutoras que pretendem aumentar a visibilidade da profissão perante a sociedade, em todo o mundo, por intermédio das redes sociais. Os interessados em participar recebem um kit de adesivos que manifestam o amor pela profissão, o qual secretamente esperamos receber de volta pelos serviços prestados. Fofo, não? Mas seria pedir demais?

E por que um lema tão insinuante quanto o da campanha “Mais amor, por favor” se aplicaria aos tradutores? Ygor Marotta, ao escrever essa frase nos muros de São Paulo, pretendia despertar em seus habitantes gestos de gentileza e respeito ao próximo, como um “bom-dia” ou “obrigado”, segundo sua entrevista para a Marie Claire. Com a internet, ele ganhou aliados e pessoas dispostas a passar a mensagem pra frente, e hoje a frase ganhou vida própria fora de São Paulo. A foto deste painel, por exemplo, foi tirada no Arpoador.

O lema de “Love Your Translator” pode nos remeter a situações parecidas: despertar a curiosidade geral sobre a profissão ou cutucar o preconceito em relação a ela. Assim, quem sabe nosso trabalho seja mais valorizado e nós possamos firmar parcerias felizes, éticas e lucrativas com os clientes, baseadas na gentileza e no respeito mútuo? Parece um tanto utópico, mas o fato é que essa mensagem também está rodando o mundo. Veja as fotos aqui: https://www.facebook.com/loveyourtranslator?fref=ts

Após receber os adesivos, me juntei com um amigo a um grupo de fotógrafos que faria um passeio do Mirante do Leblon até o Arpoador para registrar e apreciar a beleza da cidade. E não haveria lugar melhor para começar o dia: de um lado, a belíssima vista do mar, e do outro, a do imponente Morro Dois Irmãos. Resolvemos começar pelo último, que naquele dia estava parcialmente encoberto: apenas dava para ver o morro da frente. Então a primeira foto acabou não enfocando o morro em si, mas seus arredores.

Ainda assim, a imagem do morro me remeteu ao perfil social do tradutor, descrito nesta fala de Regina Alfarano em Conversas com tradutores: balanços e perspectivas da tradução: “Muito embora mais consciente da presença e do papel do tradutor, a sociedade ainda não lhe foi apresentada condignamente. De maneira geral, a figura do tradutor ainda é vista em meio a uma névoa – sem linhas definidas, sem um perfil claramente delineado”.

Essa “névoa” poderia ter relação com a própria invisibilidade textual e (consequentemente) social do tradutor. Como sua tarefa é produzir textos que não pareçam traduzidos, quem lê traduções geralmente não percebe que ali existe um trabalho humano, principalmente quando o nome do profissional não é citado. Ou apenas notam-se os erros. Ou então se pode pensar que traduzir é fácil demais: basta conhecer os idiomas, ter dicionários, glossários e acesso à internet. Enquanto nós sabemos que essa visão é equivocada, pois na verdade traduzimos culturas, umas das tarefas mais complexas que poderiam existir.

Muitas vezes também se traça uma relação direta entre invisibilidade e má remuneração, com base na corrente teórica proposta por Venutti.  Paulo Henriques Britto, em A tradução literária, sugere que isso não procede no que diz respeito à invisibilidade textual: "Se assim fosse, os cirurgiões plásticos e os restauradores de obras de arte seriam mal pagos. Não consta que eles deixem marcas visíveis nos narizes de seus pacientes para que todos saibam que a beleza de um rosto se deve, na verdade, a uma intervenção cirúrgica (...). Em ambas as profissões, a invisibilidade da intervenção do profissional é uma parte fundamental de seu trabalho, e nem por isso sua remuneração é insuficiente”.

Ainda assim, muitos de nós julgamos que em muitos casos a nossa remuneração não é suficiente de fato. Mas isso pode estar relacionado a outros fatores, como falta da organização da classe; liquidez do mundo globalizado, que torna a vida útil das informações curta e descartável; as leis públicas, que não estão atendendo às necessidades da categoria profissional; e a própria falta de regulamentação, que não exige formação específica para se trabalhar como tradutor.
 
Diante desse quadro, a campanha pode parecer utópica. Mas quem pode mudar essa situação senão nós mesmos? As redes sociais e humanas têm um potencial grande de convergir pessoas e estimular mudanças, como temos visto em movimentos juvenis em várias partes do mundo. Já dizia Eduardo Galeno: “somos o que fazemos, mas somos, principalmente, o que fazemos para mudar o que somos.”


Por que não distribuir um pouco de amor próprio e de amor ao próximo por aí? Dar e cobrar mais respeito e gentileza? Se você se interessou, então, mãos à obra! Ajude a divulgar ;-)

PS:  Gostou das fotos? Ainda tem mais! Um superagradecimento ao fotógrafo Everton Santana, que contribuiu com sua arte para colocar essa campanha em foco.

domingo, 4 de maio de 2014

Depois que o paraquedas abre, é fácil ser corajoso (EM)

Tive a oportunidade de participar recentemente como intérprete observadora de uma reunião em uma grande ONG. No evento, além de intérpretes profissionais, havia colegas iniciantes. Os idiomas de trabalho eram inglês e espanhol, e a plateia era formada por participantes da América Latina, com seus variados sotaques, além de palestrantes anglófonos, uma com sotaque australiano e outro com sotaque irlandês. Isso poderia tornar tudo mais complicado, não fosse o ambiente amigável para a interpretação.
 
Com o auxílio da coordenação de línguas, que forneceu bastante material para o preparo dos intérpretes, além do aparato técnico necessário, as sessões transcorreram bem. Os palestrantes, que provavelmente estão acostumados a ser interpretados, contribuíram para a qualidade da interpretação simultânea, falando em um ritmo razoável, pausado e claro.
 
Mas também não faltaram momentos de adrenalina. Quando as opiniões ficavam inflamadas, ou quando havia pouco tempo para a fala, e os participantes tendiam a falar na velocidade da luz. E, além disso, as palavras traziam uma carga emocional muito maior, um subtexto de intenções, pois aqueles participantes estavam principalmente tratando de direitos humanos e dando voz às vítimas de seus países.

 Nesses momentos, ao tentar fazer o exercício mental e racionar como se eu estivesse interpretando, tendo que pensar o que ouvia em espanhol e passar imediatamente para inglês, por exemplo, o esforço de memória começou a afetar a compreensão, e de repente me vi habitando um mundo em que não sabia mais que língua estava sendo falada, literalmente “lost in translation”.
 
Por isso, acredito que a primeira grande dificuldade dos intérpretes iniciantes na cabine é fazer o ajuste do input/output mental e a rápida transição de canais mentais conforme muda o idioma de entrada/saída, apertando também os botões certos da central, para evitar aquele silêncio em que todos se viram para a cabine. Além disso, há o peso da responsabilidade diante de todos os presentes, o medo de errar, o ritmo da fala de cada um, o sotaque e a carga emocional, que contribuem para tornar a tarefa mais complicada.
 
No entanto, esse trabalho foi muito bem-feito naquele dia. Foi inspirador ver os colegas trabalhando com alto nível de profissionalismo, qualidade de voz, transmitindo o conteúdo com precisão, fluência e entoação correta... Sucesso total! E, diante desse modelo de perfeição, acredito que uma qualidade antecede todas as outras para que o intérprete iniciante possa engrenar: a coragem! Ela se sobrepõe ao medo de não estarmos à altura desses padrões. Ela transforma a experiência difícil do iniciante em aprendizado e nos faz crescer diante das frustrações. Afinal, se não aprendermos a acreditar na gente, no futuro não seremos diferentes de agora.
 

Ewandro Magalhães fala de exercícios de dessensibilização do medo para que os intérpretes iniciantes possam reduzir sua ansiedade. Um deles é uma analogia ao paraquedismo, por exemplo, pois a ansiedade pode aumentar muito nos minutos antes do salto. Mas pode-se pensar que a chance estatística de dar errado é só de 1%, se tudo tiver sido preparado de acordo. E a ansiedade só dura até a queda; dali em diante, todos os santos ajudam. Na cabine também: se o intérprete se preparar, há chances de ele se virar melhor nos 30, pois a ansiedade dá lugar à adrenalina.
 
E a coragem é também o elemento-chave que reúne aquelas pessoas para dar voz a vítimas de questões sociais tão diversas, como tortura, direitos reprodutivos, prisioneiros de consciência etc. No final das contas, para fazermos qualquer coisa que valha a pena nesse mundo, é preciso coragem para começar, de preferência com o pé direito! Por isso, deixo aqui meu muito obrigado aos organizadores e colegas presentes pela primeira porta aberta nesse sentido, o que me trouxe muita motivação para continuar buscando.