domingo, 4 de maio de 2014

Depois que o paraquedas abre, é fácil ser corajoso (EM)

Tive a oportunidade de participar recentemente como intérprete observadora de uma reunião em uma grande ONG. No evento, além de intérpretes profissionais, havia colegas iniciantes. Os idiomas de trabalho eram inglês e espanhol, e a plateia era formada por participantes da América Latina, com seus variados sotaques, além de palestrantes anglófonos, uma com sotaque australiano e outro com sotaque irlandês. Isso poderia tornar tudo mais complicado, não fosse o ambiente amigável para a interpretação.
 
Com o auxílio da coordenação de línguas, que forneceu bastante material para o preparo dos intérpretes, além do aparato técnico necessário, as sessões transcorreram bem. Os palestrantes, que provavelmente estão acostumados a ser interpretados, contribuíram para a qualidade da interpretação simultânea, falando em um ritmo razoável, pausado e claro.
 
Mas também não faltaram momentos de adrenalina. Quando as opiniões ficavam inflamadas, ou quando havia pouco tempo para a fala, e os participantes tendiam a falar na velocidade da luz. E, além disso, as palavras traziam uma carga emocional muito maior, um subtexto de intenções, pois aqueles participantes estavam principalmente tratando de direitos humanos e dando voz às vítimas de seus países.

 Nesses momentos, ao tentar fazer o exercício mental e racionar como se eu estivesse interpretando, tendo que pensar o que ouvia em espanhol e passar imediatamente para inglês, por exemplo, o esforço de memória começou a afetar a compreensão, e de repente me vi habitando um mundo em que não sabia mais que língua estava sendo falada, literalmente “lost in translation”.
 
Por isso, acredito que a primeira grande dificuldade dos intérpretes iniciantes na cabine é fazer o ajuste do input/output mental e a rápida transição de canais mentais conforme muda o idioma de entrada/saída, apertando também os botões certos da central, para evitar aquele silêncio em que todos se viram para a cabine. Além disso, há o peso da responsabilidade diante de todos os presentes, o medo de errar, o ritmo da fala de cada um, o sotaque e a carga emocional, que contribuem para tornar a tarefa mais complicada.
 
No entanto, esse trabalho foi muito bem-feito naquele dia. Foi inspirador ver os colegas trabalhando com alto nível de profissionalismo, qualidade de voz, transmitindo o conteúdo com precisão, fluência e entoação correta... Sucesso total! E, diante desse modelo de perfeição, acredito que uma qualidade antecede todas as outras para que o intérprete iniciante possa engrenar: a coragem! Ela se sobrepõe ao medo de não estarmos à altura desses padrões. Ela transforma a experiência difícil do iniciante em aprendizado e nos faz crescer diante das frustrações. Afinal, se não aprendermos a acreditar na gente, no futuro não seremos diferentes de agora.
 

Ewandro Magalhães fala de exercícios de dessensibilização do medo para que os intérpretes iniciantes possam reduzir sua ansiedade. Um deles é uma analogia ao paraquedismo, por exemplo, pois a ansiedade pode aumentar muito nos minutos antes do salto. Mas pode-se pensar que a chance estatística de dar errado é só de 1%, se tudo tiver sido preparado de acordo. E a ansiedade só dura até a queda; dali em diante, todos os santos ajudam. Na cabine também: se o intérprete se preparar, há chances de ele se virar melhor nos 30, pois a ansiedade dá lugar à adrenalina.
 
E a coragem é também o elemento-chave que reúne aquelas pessoas para dar voz a vítimas de questões sociais tão diversas, como tortura, direitos reprodutivos, prisioneiros de consciência etc. No final das contas, para fazermos qualquer coisa que valha a pena nesse mundo, é preciso coragem para começar, de preferência com o pé direito! Por isso, deixo aqui meu muito obrigado aos organizadores e colegas presentes pela primeira porta aberta nesse sentido, o que me trouxe muita motivação para continuar buscando.

2 comentários:

  1. Parabéns, Maíra! Pelo blog, pelo trabalho e pela coragem na cabine!:)

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  2. Valeu, Tayná! Dessa vez fiquei observando de fora da cabine, mas estou me preparando pra um dia pilotar!

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